sábado, 24 de setembro de 2011

A via única

Este é um país estranho, de posições definitivas um dia e matizadas no seguinte, de rigidismos inamovíveis à terça e de flutuações e ambivalências à sexta, de uns a dizer assim e outros da mesma laia partidária a dizer assado no mesmo telejornal, tudo sob a pressão constante do poder dos interesses em que os agentes dos interesses, empresas e governantes, estão directa e indirectamente envolvidos. A teia urdida de imbricações entre o privado e o público que alastrou com a “economia da democracia”, e que se materializou por esse ascender de uns tantos – as mesmas e novas famílias de poder ligadas a partidos – ao controle dos dinheiros, aos negócios europeus, às possibilidades negociais criadas pela globalização e pelos caminhos ilícitos dos offshores, detém o poder, isto é, detém o poder que sobra do nosso quadro de dependências em contexto europeu e global e jogam-nos de um modo que pouco atende às necessidades nacionais, entendidas estas numa lógica relacional, não fechada.
O caminho da decisão – declarada repetidamente como a mesma até à exaustão como no TGV - vai numa direcção única até que, no tempo do que a memória curta praticada e estimulada pela política do espectáculo motiva, e cento e oitenta graus posicionais depois, assumidos agora sem empolgamento definitivos, estamos no exacto oposto e a deslizar para o mesmo tipo de tensão autoritária na exposição da decisão contrária. É o que agora sucede com o TGV e a ver vamos como, pois rapidamente se instalará, com a clarividência que normalmente resulta do debate à moda portuguesa, a confusão necessária a que as coisas aconteçam num quadro em que a perda de contornos do que se diz vá engrossando uma amálgama ideológica de que resulta justamente a opacificação das realidades específicas, dos processos e das decisões – estas tomam-se à mesma no momento justamente em que a confusão atinge o auge.
Não acreditaria possível se a isto não assistisse: para salvar a face do Primeiro-Ministro e do partido de poder face à decisão europeia anterior subscrita empenhadamente pelo Engenheiro Sócrates, a negociação em torno do TGV ruma agora, em sentido contrário ao da promessa eleitoral, para a concretização de mais uma originalidade portuguesa, a de que vamos ter um TGV em via única, do Caia ao Poceirão e de via dupla, para cruzamentos, entre Évora e Vendas Novas.
Um TGV de via única é de facto uma ideia peregrina e permitirá que os nossos horários de ingresso na Europa via grande velocidade percam a velocidade que se perderá pelo facto de só haver cruzamento durante aquelas dezenas de quilómetros que vão de Évora a Vendas Novas – será a tal Europa a duas velocidades de que se fala literalmente realizada, a metáfora tornada corpo ( a duas?)
Um comboio de alta velocidade parte de Lisboa a contar cruzar-se com outro nesse troço da linha entre Évora e Vendas Novas e calculando tudo para que seja assim, impedindo um regime específico de horário livre caso fossem construídas, como será lógico, as duas linhas autónomas. Não é por acaso que nestas coisas, nos países da Europa, se pratica a política das duas linhas, uma ascendente e outra descendente. É elementar a compreensão desta necessidade e fica claro, com uma decisão deste tipo que o efeito específico da crise, a política da crise, é o aprofundamento do nosso afastamento da Europa no mesmo momento em que a Europa também se afasta do que era e foi – é como se neste processo de integração praticássemos uma política do afastamento constante das metas europeias para a nossa própria vida pela via da suposta integração e que, com isso, na realidade, materializássemos a desintegração europeia. O esboço de integração motivado apenas pelo euro, como agora todos dizem, está longe de uma livre, maturada e necessária integração política, outro patamar de compromissos entre nações democráticas e solidárias – como se isso contasse para o que quer que fosse mais do que para alardeá-lo numa afirmação dos princípios sempre quebrada pelos pragmatismos servis.
É de facto uma estranha metáfora, a via única e cola com a da dívida, também vítima, do lado da solução da sua superação, de um olhar governativo que a reduz a uma via única, a dos cortes que trarão a regressão económica e não o crescimento e o aprofundamento democrático. Tudo se faz e inventa para que a redução do défice aconteça em nome de uns números que são completamente artificiais e se relacionam com empréstimos, com juros e especuladores, como sabemos e não com a produção de riqueza que liberta o crescimento e a autonomia de decisão. Somos um país doente de dependência e de servilismo. Esta da via-férrea única para o nosso TGV como metáfora do nosso modo de entrar na Europa, saindo dela, cobre-nos de um ridículo incomparável.

fernando mora ramos

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