sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A ilha

Qual era afinal o petróleo da Madeira? A dívida oculta. De dívida em dívida não só se faz a obra e o espectáculo do “desenvolvimento constante”, estradas e túneis como no Continente, como se enche o papo – só a catástrofe recente, com as revelações que a natureza destapou, pôs a nu erros crassos de urbanismo, com o modo como a água, descendo as montanhas, foi empurrada para onde nunca iria pelas vias naturais, como o afirmaram os especialistas ao explicar como nas linhas de água se construía sem regra.
Esta dívida que agora se revela, entre muitas ocultações anteriores mais ou menos conhecidas, é o sinal de um conúbio estabelecido entre os poderes no continente e o poder na ilha, e existe como que uma prática aceite de facto por tradição consuetudinária pelos governos centrais que nunca agiram e que o devedor diz, para legitimar o ilegitimável, ter cometido em legítima defesa, como se o diálogo político fosse um duelo entre pistoleiros – a frase é esclarecedora e remete para inflamadas (FLAMA, assim se chama a estrutura guerrilheira de direita que exerce um poder oculto na ilha) ameaças anteriores de independência avulsas, ouvidas repetidamente na ribalta da política nacional quando o poder insular necessita da chantagem como forma de acção directa, a que nunca faltou um arreganhar armado dos dentes de fora. É gente que se exalta, e cospe agressões de teor soez numa linguagem inaceitável, quando lhe tocam no que, sendo público, gerem como propriedade privada. A Madeira é uma Região Autónoma gerida como um latifúndio privado, desde Abril. Quando se diz que na Região Autónoma da Madeira há um défice de democracia incorre-se numa imprecisão de consequências incontroláveis. Há défice no continente, isso sim, com a ausência de acção do poder judicial e com a promiscuidade entre os poderes e não há sequer democracia na Madeira, nuca houve, Abril nunca lá aportou. A democracia é o bem-estar geral como projecto em processo real e a liberdade de opinião e organização associados a formas de solidariedade coerentes, factores de coesão e estas qualidades da liberdade e do desenvolvimento real não são, na Madeira, factos de um quotidiano interiorizáveis – ninguém que lá vive sente democracia e todos falam de medo, excepto os que o fabricam.
Na Madeira, o folclore do poder de Estado agindo e a impotência das oposições parlamentares, de verdadeiro vão de escada organizacional, mostram como uma pequena região pode viver à margem dos princípios gerais de vida democrática e da coesão nacional. Quando a generalidade do emprego das pessoas depende do Estado Regional – só gorduras como diria o outro, se quiséssemos ironizar – e quando a liberdade de opinião não tem espaço e só se faz ler e ouvir em actos de coragem e resistência, estamos num regime que não tem nada de democrático e tudo tem do velho paternalismo cacique. Todos têm medo do desemprego e todos têm medo de expressar opinião divergente porque temem represálias, estamos cansados de o ouvir. No resto do latifúndio reina o casino e o folclore carnavalesco mais os fogos de artifício de novo ano velho.
Em qualquer democracia a revelação, e o assumir directo após a negação – o ziguezague de posições caracteriza a inconsistência da política e a consistência dos interesses, ou melhor a sua sobreposição como A política seguida - da ocultação de uma dívida, valor essencial para efeito de contas, locais e nacionais, levaria a medidas de punição que são as que derivam do lesar dos interesses do Estado. Uma dívida de 1113 milhões de euros assumida directamente pelo Presidente do Governo Regional levaria eventualmente, na base da lei 41/2010 sobre crimes cometidos por detentores de cargos públicos, a uma pena de prisão de até um ano.
O que se vai passar? Mais uma vez vamos assistir a um deixar andar do que é nitidamente crime de colarinho branco no topo da hierarquia do Estado? O Estado protege os seus para além de todos os limites? É-se inimputável por se pertencer ao Estado, ao poder? Este processo de análise anunciado pelo PGR só dá vontade de chorar. Mais um processo que vai levar não se sabe quanto tempo e que não vai concluir nada ou que vai esperar que o tempo resolva de modo injusto o que a justiça deveria julgar punindo. Este é um país sem rei nem roque. Este é um país que está a hipotecar o seu futuro concedendo aos poderes de facto espaços de manobra em tudo contrários aos princípios da democracia e à lei. É de facto altura para falar da necessidade de um sobressalto democrático. Se Abril se fez, outro Abril será possível.

fernando mora ramos

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