sábado, 23 de julho de 2011

Subjectividade e cristalização ideológica, o norueguês alto e louro

O texto que se segue foi escrito a propósito das “dramoletes” de Bernhard que este blogue divulgou a propósito da sua apresentação pelo Teatro da Rainha no Festival de Almada, mas creio que têm tudo a ver com o norueguês alto e louro que cometeu o massacre a que assistimos na Noruega.
Estes dramoletes são sobre a incomunicabilidade e não sobre a comunicabilidade. São sobre a incomunicabilidade que coincide com a cristalização de pontos de vista, rejeição da realidade, uma visão da realidade contra ela tal como a realidade é intrinsecamente plural e múltipla, avessa a uma disciplina militarizada, a um ordenamento racista, hierárquico e homogeneizado. A militarização do espaço social é a ordem evidente da visão nazi, a educação confundida com treino militar, culto do chefe e dos mitos pátrios, o corpo deificado como expressão de uma perfeição de origem genética a que tem de se dar forma política e estética. E essa religião tem uma dimensão quotidiana, militante, concretizada no jogo de uma superação constante do “puro” contra o outro, o diferente, qualquer que seja, o judeu, o cigano, o negro, o estudante, o turco, o africano, mesmo o “amigo” do lado que pensa diferente.
São sobre a incomunicabilidade e por isso correspondem como teatralidade, jogo adequado, a um registo “introspectivo” ideológico e não expressivo, ou melhor, a uma solução introspectiva expressiva em que a expressão é ideológica. Falamos de uma introspecção que faz coincidir subjectividade com ideologia. Se a expressão subjectiva se encontra na singularidade, na característica de cada um, com a fragilidade e a precariedade do sujeito na sua relação com a realidade e com os outros, nestas personagens a cristalização das posições subjectivas transformam a visão pessoal numa visão ideológica – Althusser define a ideologia como “as ideias mais os comportamentos”. Eles falam ideologia em nome uma dada ficção de identidade pátria que projectam e que, no passado, arrastou o mundo para o holocausto. Foram os seus autores e soldados, inventores e assassinos, máfia operando no aparelho de Estado, usando o Estado para os seus objectivos inumanos e desumanos. Por isso neles fala essa ideologia antes de eles serem o que possa ser uma singularidade, alguém, uma pessoa, porque neles fala, antes do eu, a ordem de uma religião de Estado, de uma religião imperial e militar de Estado.
Essa incomunicabilidade significa que comunicam sem troca de experiências, em posições ancorados na mesma visão única, jogo tautológico de reincidências, a diferença neles é apenas o reconhecimento da hierarquia. Entre eles apenas se verifica o que eles próprios pensam da humanidade: cada um deve praticar o jogo da supremacia, deve almejar o cume, o topo da ascensão, o lugar do “capo” e por isso, mesmo entre eles e apesar da identidade cristalizada de pontos de vista, há uma luta constante pela afirmação de uma superioridade de uns relativamente a outros, de um casal relativamente ao outro, do homem relativamente à mulher, da mulher relativamente à outra mulher, de um homem relativamente ao outro homem.
Entendem a sua presença no mundo como uma predestinação, como uma missão, a missão da expressão da superioridade, a missão dos “cruzados”, a conquista do mundo e a imposição de uma escravatura generalizada a todos os outros, a todos os diferentes.
Assim é também verdade que, num certo sentido, praticam solilóquios ideológicos, monologam ideologia afirmando coincidências. O que não significa que não sejam absolutamente banais e vulgares nos comportamentos, mesmo parecidos com os outros que detestam, eis a armadilha, a normalidade aparente.
O mais relevante é de facto a sobrevivência destes aspectos de mentalidade que provam a existência da possibilidade de um regresso ao passado que continuam a mitificar como um passado de heroicidades. Não só não aceitam a derrota como estão disponíveis para uma nova aventura do mesmo tipo nas condições da actualidade. São nazis e existem, existem ao ponto de na Alemanha serem objecto de estatística – em 2010, diz o relatório dos Serviços Federais de Inteligência, houve 15.905 delitos perpetrados pela extrema-direita alemã. E como agora se prova pelo acontecido em Oslo, o perigo não prevenido termina em tragédia.

fernando mora ramos

1 comentário:

  1. Uma notícia do jornal Público de 23 de Julho, refere que Anders Behring Breivik , suspeito detido após a explosão à bomba em Oslo e a carga a tiro indiscriminada num campo de jovens na ilha de Utoeya, foi descrito pelos investigadores como “um norueguês de gema”, de 32 anos, que até à data estava totalmente fora dos radares da polícia. No Twitter, esse "norueguês de gema", postou uma única mensagem, datada de 17 de Julho, citando o filósofo britânico John Stuart Mill: “Uma pessoa com uma crença tem tanta força quanto 100 mil pessoas que têm interesses”.
    Agora, escrevo eu, é preocupante e assustador constatar que o Ocidente, por muitos considerado o mundo civilizado, esteja (cada vez mais?) vulnerável à proliferação de ideologias fascistas e de fundamentalistas que planeiam matar e o concretizam em nome dos seus fanatismos. Para onde caminhamos nós?

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