segunda-feira, 18 de julho de 2011

Papel de embrulho e laço

As crianças, nas suas visitas de estudo, poderiam conhecer o mar, a pesca, os Jerónimos, a Serra da Estrela, etc., e poderiam mesmo conhecer outras coisas, como o interior dos interiores junto às casas mortas das aldeias da pura memória, as famílias solitárias, a árvore mais antiga de Portugal, o ruivaco de regresso à ribeira de Alcabrichel, a vaca açucarada das Caldas, o rio Homem, as falésias da costa vicentina, as Terras de Suão, as vinhas do Douro, o montado alentejano, o porco preto e o porco da farinha de peixe ou lá o que lhe derem para engordar, a aquicultura e a pesca à linha, a lagoa de Óbidos, o vinho dos mortos e as invasões francesas no seu sítio, A Dos Francos, o silêncio que resta no interior mais interior do último arvoredo português cercado de eucaliptos e tantas outras coisas vitais que nenhuma folha A 4, nem A 3, nem a própria alcatroada A OITO, nem um romance de duzentas páginas de títulos possíveis de ficções poderiam conter. Poderiam conhecer coisas muito diferentes.
Mas agora o que se passa é que as crianças fazem visitas de estudo a centros comerciais e têm aulas de como comprar e vender coisas e pessoas, pernas de pessoas da bola biqueirada e cabelos e unhas assim e assado e como encurtar ou aumentar o nariz, formas de desenhar as partes íntimas e piercings de pendurar nos artelhos para dar nas vistas aos artelhos adversários na competição global, pois tudo se aprende para sermos competitivos e exportar como diria o professor Cavaco, o que der para exportar, até a avó claro, uma avó de qualidade, competitiva. Numa outra vertente, as nossas crianças, têm também aulas de novela, de como consumir outros que, deste modo, muito maus ou muito parvinhos, são tão descartáveis, ou menos, que o urso de peluche, pois esse não discorda, só abre o corpo ao abraço, nem urrando, pois as pilhas, logo gastas, esgotaram-se no tempo de um abraço apertado, sem medida calibrada.
É isto, segundo os analistas psicólogos e sociólogos e mesmo engenheiros, mais os opinian makers TVvisíveis – os do pino opinativo -, que se passa hoje em dia: a transposição dos afectos, antes humanos entre humanos, para os animais de estimação vivos humanizados pela nossa capacidade de os ficcionar e pelos beijinhos pedagógicos nas babas diversas, pois os animais mortos, os de peluche, não satisfazem o afecto predador dos miúdos e dos que, adultos, ficaram adolescente e infantes – o adolescente retardado abunda e o sempre infante também - conheço alguns que já vão nos sessentas e são responsáveis e estimados pela sociedade como seres pensantes e relevantes apesar de às escondidas namorarem o bibe e terem muitos cd’s para fazer castelos como de legos (este tipo humano espalha-se como uma nova fé no Império das famílias hiper-protectoras).
Os miúdos gostam de apertar muito o bicho vivo e não o morto, pois este não responde e portanto não é interactivo e não o sendo não é pedagógico, num abraço que, por vezes, é de urso e nada de peluche. Estes bichos vivos, que se vendem em lojas da especialidade – nunca vi tanta passarada em gaiolas e tanta selva a morrer - já passaram à muito a soleira da porta e ocuparam no leito o lugar do parceiro ou parceira. Muita gente gostaria de ser bicho de estimação e uma grande parte desta gente que tem esse desejo gostaria mesmo de atingir o estatuto do gato de divã, esse animal que faz a psicanálise à dona, ou dono, com o seu ronronar inteligentíssimo e que depois, num gesto de cumplicidade sadomasoquista arranha a dona nos pontos conhecidos da acupunctura para lhe expulsar o tóxico stress erótico pelas narinas, por onde também saem certas alergias primaveris – o erotismo, que é uma prática e não um acidente, exige alguma escola e que, ao mesmo tempo, se não perca a inocência do primeiro impulso, tudo com muita blindagem por causa das bactérias e dos vírus e das contaminações.
É o próximo passo talvez, o casamento entre espécies diferentes, por exemplo entre um camelo e um habitante das beiras – vulgo ratinho -, ou entre dois camelos com bossas diferentes, ou entre um camelo estúpido e um dromedário inteligente, ou entre uma iguana e duas Vanessas, ou entre dois camaleões em regime de beliche por acoplagem com dois furões em extinção mais que havida, tudo na mesma toca de 4 assoalhadas e quatro camas de casal para sexo rotativo em digressão interactiva doméstica – rodízios à brasileira, manjedouras amazónicas -, ou mesmo entre um lagarto, uma pomba e um gambozino, um casamento nocturno como as composições do Chopin para depois dos sóis postos, ou mesmo entre dois caniches que tenham frequentado o colégio alemão e um rotvailer que tenha andado no francês, ou para finalizar esta listagem aberta, entre um Sócrates que ladre inglês técnico e um conselho de administração qualquer que fale estatística e em que faça de centro de mesa um Coelho, por exemplo – isto não é sobre os casamentos gay, conquista maior que Abril como Sócrates disse e que são muito bons para a nossa sociedade de mercado, para a família e para a santa casa que, como sabemos, põe todos a comprar lotaria na porta da desgraça, à entrada do tsunami de serviço ao esbulho a que nos sujeitam, filhos bastardos da Europa Puta e do FMI Proxeneta.
Os nossos netos, o futuro, os nossos filhos, o futuro, agradecem em nome dos afectos e da dívida que carinhosamente a sociedade do hiper-consumo massivo constrói com denodo, gentileza sorridente e muitos embrulhos, os mais criativos que se possam imaginar. Somos aliás o primeiro produtor mundial de papel de embrulho e laços, e vamos exportar o mais que pudermos para sair da crise para uma nova crise tão boa como esta que tem cada vez mais centros comerciais, mesmo mais que cogumelos selvagens.

fernando mora ramos

1 comentário:

  1. Desconfiava, mas li que Nuno Crato segue o pensamento dos neocons americanos que alimentam a ideia de que há disciplinas mais importantes do que outras (cá, vi referidas a Língua Portuguesa e a Matemática) e que defendem a regulação do sistema por exames.
    Ora, assim sendo, o que virá aí para os nossos alunos? Muito provavelmente, uma avalanche de palavras e de números, apenas orientadas para os exames (com a competitividade a disparar) e uma acentuada lacuna no cruzamento de saberes, no desenvolvimento do espírito crítico e criativo e no exercício do saber ser e estar.
    E pegando no que Fernando Mora Ramos escreve sobre visitas de estudo, o contacto com a Natureza ficará naturalmente arredado, e aquelas serão feitas obsessivamente a centros comerciais para que os alunos possam efectuar, à exaustão, cálculos sobre compras, vendas, trocas e trocos. E já estou a ver, pais e familiares estimulados pelos seus filhos a serem levados na onda avassaladora do consumo desenfreado, em que tudo querem levar, (menos livros, claro!), de preferência em lindos embrulhos com coloridos laços, muitos, certamente, com animais de estimação autênticos ou não, (citados por FMR), conforme os gostos e necessidades de quem os deseja ter.
    E depois deste investimento todo, de muitas idas e vindas, com catadupas de cálculos, conversas, dissertações, é vê-los a apanhar com os exames em cima e estaremos aqui para ver como será. Melhores resultados nos exames? Talvez, mas menos saber ser e estar!

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