segunda-feira, 4 de julho de 2011

O hubble da crise

Meu avô dava aula de jumento, ia de jumento dar a aula. Meu avô era do século dezanove e veio até ao vinte a protestar, republicano e empresário de lagar falhado. De cá de baixo da Escusa partia diariamente para Marvão e em Marvão ensinava a tabuada e o abecedário. E o país pachorrento caminhava lenta mas seguramente ao ritmo do jumento, da sua ruminação tranquila durante a aula do dono, a trela no pinheiro e uns tufos de erva de pequeno-almoço a vitaminar-lhe força para descer e subir, voltar a subir, voltar a descer. E a retórica dominante falava de pátria e os alunos, aos sábados, marchavam, as meninas costuravam. Muitos dos aprendizes de tabuada andavam com rebanhos pela encosta e pisavam a caruma com as palmas dos pés, não conheciam o sapato, horizonte por vir e que hoje encontrado - nem todos os horizontes são amanhãs que cantam – trouxe uma fartura de sapato que excede a procura, há muitos mais sapatos que pés e cada pé, à força de muitos pares gozar, perdeu o amor do par único. Se dois mais dois ajudavam somados, a uma nova vida, mais esclarecida, é porque a vida era pouca, pouca vida como pouca terra, pouca terra, e o destino de cada um mais provável que indefinido, exceptuando os que iam a salto para outras paragens, pois aí uma certa margem de aventura introduzia um não sei quê de aleatório, por vezes penas partidas e longas fomes, bocas caladas. Nas nossas terras paradas habitava um tempo que se ritmava pelos pôr e nascer dos sóis e a vida dura de uns alimentava a vida ociosa de poucos, como sabemos quando se falava, e falam os que se lembram, de andar entre chaparros e trigo de sol a sol – estão a ver o lenço da ceifeira? E não havia crise, o subdesenvolvimento era assim, lento, subdesenvolvilento, massacrante. E as coisas existiam, ou não existiam, por definição, a verdade cabia numa afirmação, o dogma tranquilizava, o parágrafo era definitivo, o parágrafo do meio letrado ou do letrado inteiro, o carimbo selava as verdades para uma eternidade certa. E por definição portanto, tudo estava bem, a fé, o império, a masculinidade dos meninos e a virgindade das noivas. Era um mundo estável, sossegado e os estrangeiros é que tinham problemas, os problemas do desenvolvimento e da democracia, coisa que não podíamos ter pois assim éramos felizes, felizes com o nosso atraso – como a camponesa de Pessoa - e as virtudes do que não conhecíamos traduzia-se por uma ingenuidade benévola que se estampava nos rostos – um povo em que apenas destoaria um buço mais agressivo, um olhar mais avinhado, um desejo incontrolado de bagaço, por vezes logo pela manhã, ainda antes da aurora de róseos dedos trazer a tabuada dos nove, esse cume aritmético. E o mais curioso era que quando o meu avô ficava de baixa com um catarro a roçar a gripe, ou de ressaca de uma discussão mais clandestina, o jumento ia à mesma para cima. Se dava aula ELE, nunca soube, o meu avô não estava lá para ver e não contou, mas tinha-o por assistente, isso era certo – nas universidades os assistentes carregavam as malas dos doutorados, uma outra forma de fazer de jumento, era assim com a Professora Doutora Carolina Micaélis de Vasconcelos segundo o Sena diz no Reino da estupidez. Mas poderemos imaginar que zurrasse as letras do abecedário como o Luís Gonzaga na canção.
Agora os novos tempos anunciam doces velhos tempos. A crise tem destas coisas e parece que cada um de nós terá que prever a sua horta, seja horta urbana, horta de apartamento, seja horta periférica, um metro quadrado roubado numa qualquer terra de ninguém entre uma velha linha de comboio abandonada e um fim do mundo qualquer nas franjas da cidade, a que se possa ir a pé, ou, cá está, eventualmente de jumento. A horta, o cajado, a somarem-se ao jumento. Só faltará escutar as entradas dos paquetes nos grandes estuários como um mundo que é dos outros e um além que poderemos sempre aplaudir de espanto. E de novo o estrangeiro ficará mais longe, longe com todas as globalizações ao pé, como naquela história do Ben Jonson em que um esperto tinha desenvolvido uma forma de se alimentar pelas narinas na rua dos restaurantes, em Londres. Espero entretanto que as carroças regressem e as amendoeiras em flor galguem as auto-estradas que o progresso – o “puguesso” fez progressos de dicção, eis o avanço - trouxe e se desenvolva um reticular sistema de tocas com coelhos pós modernos, coelhos pós aviário, coelhos neo-selvagens. Creio que quando aí chegarmos, a charrua sorrirá nos bíceps dos nossos novos jovens e os filhos únicos de famílias super protectoras finalmente ganharão barba rija e curtirão ao sol do campo o mesmo tempo que curtem nas camas, de manhã, à espera que mamãs e papás os acordem para as agruras do quotidiano, com mais do que o cuzinho lavado com água de rosas, uma palavra simpática bichanada ao ouvido frágil, coitadinho, coitadinha.
E o desemprego acabará, é claro, desde que cada um possa ter os seus metros quadrados de horta pós biológica – com a e. coli veio o pós biológico ou estará a vir-se - estrumada a sopro de jumento e olhar concentrado de novo proprietário, telepatia laser agro estimuladora. E finalmente atingiremos o século dezanove que é um século prometedor. Foi nesse século que o grande Marx descobriu a mais-valia e mais vale que lá cheguemos do que andar para aqui a andar para trás a fingir que vencemos a crise – dez passos para trás e depois onze para a frente, mesmo doze e mais improváveis, mesmo quinze. Poderíamos depois evitar a industrialização selvagem e entrar directamente na crise de hoje, crise da especulação, do mundo às ordens de bancos e accionistas de rosto conhecido protegidos pelas suas leis e pelos seus órgãos privados de regulação pública. Nessa crise, em que estamos, cada um plantará uma árvore nessa horta a que tem direito, a árvore das patacas e da poupança. E regá-la-á com o suor do seu rosto num gesto bíblico. E com o fim das auto-estradas a população em geral e os consumidores em particular irão, todos irão, de jumento híbrido para o Algarve plantar bronzeados, uma indústria que deveremos desenvolver e eventualmente exportar. Depois da pêra rocha certamente que o Presidente Cavaco, pelas suas ligações a Boliqueime, terá uma palavra, uma palavra empenhada e enraizada a proferir acerca dos bronzeados como alavanca e sustentabilidade. Depois de tudo isto, receita salvífica, talvez uma nova velocidade e um novo silêncio venham: aquele que se chama buraco negro e que nos sugará a todos numa espécie de tsunami invertido, nós os corpos das ondas. Essa galáxia, para ser descoberta, não necessita de nenhum Hubble.


fernando mora ramos

1 comentário:

  1. Teresa Palma Fernandes4 de julho de 2011 às 16:18

    Tocou-me muito esta escrita com travo amargo. Fez-me percorrer um passado de muita pobreza em sentidos diversos, com vãs glórias impingidas, em que a repressão era exercida do subtil ao brutal e constatar um presente em que nos querem fazer crer que só nos resta o abismo. Por ora, ainda gosto de pensar, escrever, dizer, gritar, Viva a Vida!

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