sábado, 9 de julho de 2011

Guilhotinar o desejo

Robespierre não é pai de muitos. Danton é-o, por contraste. Somos mais à maneira do Danton - filhos já de uma curtição que tudo galgou - que à de Robespierre. Eu sinto-me mais Danton e sonho com Robespierre. Tudo isto é muito estranho. Tão estranho como mapear o desejo – com um GPS das intimidades – e saber que não há sonar específico que o identifique à solta, inapanhável mas muito físico. Se vem de zonas profundas da psique, não sabemos se aquosas ou secas, o que sabemos é que não são radiografáveis, não têm libidografia possível, são nebulosas muito presentes. Zonas incógnitas em destinos vários por muita ciência que delas se aprochegue (isto é lixado pois aprochegue dá vermelho no ecrã, o censor está agora disseminado como um vírus, e o vírus não é o da boa gramática mas sim o da regra massiva, a regra burra – quando não sabem, cortam, não existe e, em resultado, como sentimos e podemos ver os que nisso reparam, só existe o visível e o fácil no visível).
Eu nunca gramei gramática e fui dos que fez guerrilha, não fui dos bem comportados, fugi pela janela e tive suspensões e faltas disciplinares, a sujar o bom nome do meu pai, um pedagogo. Mas sei que essas zonas desconhecidas do outro que temos dentro são relevantes, têm relevos, como são as zonas erógenas, duna ou menir, coisas carnais sensíveis, e sendo curva ou protuberância exaltante são sismo promissor. O mamilo, e por oposição, as bordas do rego, vale ou desfiladeiro, como se queira, ou a flor em língua na amora – dentro da saia está uma amora preta - vertigem de promessas cósmicas, qual chegar a Marte ou a galáxia alguma depois de todas. Teorias ou o que se lhe queira chamar. As teorias desde que Bernhard disse que Freud era romancista têm que se ler como ficções pois Bernhard era de uma intuição inteligente única e universalizável. Um cérebro singular, leiam-se Os meus prémios, um feitio único, coragem para dar e vender, o que rareia mais que o ouro.
E agora as nebulosas: o que dizer? Que somos assim ou assado e ir a correr à procura de uma classificação? Mas a propósito do quê? De uma dificuldade de viver com a hesitação? De facto o problema é de consistência e respeito da natureza que, não duvidem, muito escreveu por si. Quando vejo os académicos na querela silogística, ainda hoje ou na dúvida metódica, mais ou menos legal – o direito, o que será e que servirá senão escrever torto por linhas tortas? –, só me vem a vontade de dizer que andam entretidos como os outros do entretenimento padrão. Mais perigosos são os sins sins da economia cega e os que, de tão livres que são, preferem o crash a que todos possam alimentar-se e vitaminar-se os mínimos corporais
Na realidade a guilhotina, que não é usada sequer na metáfora mas é tradição europeia – hoje mata-se de modo politicamente correcto, isto é, usando a economia e as finanças como meios de genocídio - não é para os costumes, é, seria, para o roubo, para a corrupção do poderoso, o enriquecimento cavado no suor alheio, na escravatura ocultada e promovida, tolerada – esta dos escravos não é uma flor de estilo, ainda o outro dia o revelaram quanto a pessoas menos capazes mentalmente, habitantes da Beira raiana e para aí caminhamos com a presente proletarização geral, tanto pela via da desqualificação do ensino como pela via do desemprego massivo.
Não é o ilícito que nos deve preocupar mas o lícito que faz do ilícito um caminho legalizado. Isto é, o lícito ilícito. Isso chama-se neo-liberalismo. Se um Ministro apanha no rabo, não nos deve preocupar, é o rabo dele, não é lugar de guilhotina. Já nos devem preocupar os pinheiros do tal Abel Pinheiro e os turismos da Estremadura que em nome de Portucale ocultam caminhos nada pátrios e promovem feridas no corpo território, mártir como tem sido, Algarves e desordem massiva urbana que não cessam mesmo com todas as inventadas reservas, a ecológica, a natural e a agrícola, tudo feito para um álibi que venha sempre que um poder maior que a lei queira fazer um campo de golfe. Quanto a submarinos, estamos falados. Talvez só o Gama diga coisas, esse peixe de águas profundas que viveu uma vida inteira no aquário parlamentar e que agora está calado. Este Gama não foi à Índia, veio dos Açores e é respeitado à direita e à esquerda, é mesmo pilar, regime.

fernando mora ramos

1 comentário:

  1. Teresa Desassossegada11 de julho de 2011 às 11:53

    Porque gostei e porque vem a propósito.


    O Mundo Tem um Focinho


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    Não penses que o mundo tem para ti um rosto,
    uma fisionomia de dócil empregado de mesa
    ou de mulher bela;
    a vida — e o mundo a que está agarrada —
    tem sim um focinho. E esses beiços grossos
    (que jamais incitam à música)
    desde que nasces, como um juiz de cara
    deformada, observam e julgam os teus comportamentos.

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    Em média: as pessoas aperfeiçoam mais os engenhos
    mecânicos da corrupção e das traições mesquinhas
    que os da hospitalidade. Os perigos
    que observam um corpo são produzidos incessantemente
    em qualquer fábrica desconhecida
    mas eficaz.
    Há muito perigo no mundo
    — terás pois (não te aborreças já) a tua bela parte.

    Gonçalo M. Tavares, in "Uma Viagem à Índia"

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