domingo, 17 de julho de 2011

Sodré imaginário

No cais
As datas prescrevem
Ferrugem alucinada em mapas de corpos experimentados
Cerveja que baste e
Asas de borboletas
A escapar-se de um papel de parede que nunca foi
O olhar desenha as nuvens por entre os eléctricos
Os pés de asas aladas
Perdem-se no alcatrão total
A sacudir as migalhas de incomodidade de algum olhar que é esgar
O que as cidades trazem aos estuários surpreende
Pernas de cadeiras e abajours
Latas de tomate pelado e corpos silenciados
Armações óculos de lentes riscadas
Colher de pau solitária e receitas para estrelar ovos sem frigideira
A criação tem as suas gramáticas
O homem o seu desenrasca

Das nuvens
A memória paira suspensa no movimento que as tem
Para Sul
Andam e o olhar cessa
E não há Sócrates em nenhuma delas
A chinelar desesperado por um chão
E dizendo a Alcibíades que os bíceps
Pedem o mármore de Fídias
Nem nas nuvens há publicidade
A nenhum iogurte salvador
A virgem reformou-se é pena já não voa
E os deuses gregos não gostam deste céu têm o seu resort
Apenas um húmus aquoso
Vindo de um tempo anterior à terra
Um país um continente móvel
Uma sauna intercontinental
E lentamente passam entre fracturas de azul que mudam
De fractura entremeada
Em azul acinzentado entremeado

As datas prescrevem
Nas nostalgias reincidentes
Nos olhares envilecidos
Como nos outros
Perdem a vitalidade do sangue
A respiração de um tempo preciso
A pele das sensações concretas

Os compêndios enumeram-nas como os rios outrora
Mas nada disso transporta as nuvens como agora
Sobre este cais que os dedos podem percorrer
De odores únicos
Um timbre de atmosfera irrepetível
Mesmo um silêncio diferente
Sempre outro
Entre dois ecos distintos
O navio ao longe directamente de um poema conhecido
E o prato que caiu
De uma louça que guincha como não acontece ao barro

Não há horizontes
Apenas a sombra que as nuvens provocam no extenso
Mapa que se alonga de sopro íntimo
E que tanto pode ser um mar calmo
Como trigo sem limite
O trigo sem limite do pão que regressa

Sob o cais o mexilhão
Ganha com a ferrugem do tempo
O sal lento da vida que se deposita
Até que tudo se cristaliza
Sem postal possível
Sob a invisibilidade bela
Do que a sombra protege
Dos excessos de convergências plastificadas

Lançaram-se ali as palavras
Como no círculo atlético
Pedras na ponta de cordame rápido
Raízes aéreas de imagens
Em busca do interior das nuvens
Hortas celestes biológicas mais que lógicas
Por acontecer
Sem moldura nem forma proprietária possível nem mensuráveis
Não há hectares no Olimpo
Apenas rotas e tráfego aéreo de ponta
Em corredores precisos
E as sílabas as vogais as frases e os parágrafos os fonemas longos
São corpos a dançar nas estradas de respirações maiúsculas

Quem as atira provoca
Como os furações
Cornucópias de novas realidades
Móveis voadores
Pássaros azarados
Vestidos de noiva enlaçando postes de luz
Uma casa inteira como a de Chagall
E barcos alados
Como nunca visto
Mesmo algum ministro

No cais a partida
É para dentro
Para o arquipélago do verbo
Nada ecoa que não seja notado
A pele balança no coração da nuvem
A palavra sob a humidade
Do barro
Germina latejando
E não come lentilhas

Emílio Navarro Soler

2 comentários:

  1. Um bonito poema. As palavras formam a nota musical suave de uma canção de embalar.

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  2. Sabia Emílio Navarro Soler que o título seria outro, se não fosse uma família Sodré, de origem inglesa, ter-se estabelecido neste local, no século XV? Pela designação anterior, teríamos "Remolares Imaginários"!
    Para os curiosos, remolar é um fabricante de remos.

    Sodré Imaginário, um poema excelentemente denso de imagens e sensações!

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