segunda-feira, 25 de julho de 2011

O nazi anti-nazi

A jornalista, muito no jogo opinativo de ecrã, disse, o neo-nazi norueguês. Fugiu-lhe a boca para a verdade, o que num jornalista é raro, dada aquela coisa chamada deontologia profissional que obriga à neutralidade cultivada quando ela não tem espaço de existir – é o caso do tipo que tem a arma apontada ao peito e de quem, falando para terceiros, o relator em directo dirá que depois de morto terá as causas apuradas, cumprindo objectivamente o papel informativo – ele é a fonte diante do delito mas o delito ainda não sucedeu e só depois será avaliado nas causas evidentes e nas outras, como se depois fosse assim mais do que para se vender que é assim. Um jogo de facto hipócrita. Deontologia será outra coisa, mais que uma moeda de troca num qualquer jogo de relativização pragmática de valores tão fundamentais como a verdade, principalmente quando a fonte de uma informação – é o caso – é o próprio criminoso que, na sua página do facebook se diz anti-nazi, como se a opinião do sujeito em causa própria tivesse valor de objectividade a respeitar – enfim, pobreza conceptual a operar o rol noticioso ou medo do censor de serviço, o editor das novidades e mesmo o conselho de administração. O que será um tipo de extrema-direita que mata jovens socialistas porque são defensores de uma sociedade aberta aos muçulmanos? E que será um tipo que diz desejar ser o maior monstro da história desde a segunda guerra mundial?
A jornalista disse depois, desculpem, “o anti-nazi norueguês, admirador de Churchill e música clássica”: está feito o preâmbulo da novela, o enredo de explicações vai suceder-se a favor do sistema e da ocultação das razões reais deste genocídio, ao que parece perpetrado por um cavaleiro solitário, escultor racional de um apocalipse longa e pessoalmente preparado, tanto quanto se pode preparar um verdadeiro crime de guerra, aparentemente de modo isolado – o que não significa que estivam facilitados todos os aspectos logísticos, desde os tais fertilizantes facilmente adquiridos (nitrato de amónio), às armas, aos automóveis, à farda de polícia, ao próprio poder económico que revela uma operação do género e à sociedade envolvente, próxima e menos próxima, que nada detecta.
Era – é - um cretino da classe média, da classe média alta, disfarçado de agricultor biológico que odiava os muçulmanos e o marxismo cultural (assim lhe chama) e que o escreveu – mil e quinhentas páginas de xenofobia militante a que se juntam dois anos de preparação do massacre, além da prática dos jogos de guerra virtuais, do celibato, dos vídeos em que aparece armado no Yutube e de outros dados que o sinalizavam como potencial assassino político em massa.
Os psicólogos, os psiquiatras, os criminólogos, os analistas políticos, os opinian makers, as figuras respeitáveis e os senadores da República, mesmo o Dr. Marcelo do seu eterno púlpito, têm emprego garantido para os próximos tempos – haja paleio e multipliquem-se explicações até que o novelo estabeleça a confusão necessária à não emergência da verdade, pois esta certamente apontaria culpados nas estruturas do sistema, mais do que com uma falha patológica na cabeça do criminoso.
Foi tudo racionalmente estudado até ao pormenor e executado com um sadismo frio e terrivelmente eficaz, ao ponto de atrair as vítimas com o seu canto de sereia polícia, dizendo já não haver perigo e de disparar duas vezes sobre os corpos para se certificar do que morriam. Ao lado deste crime o adolescente que matou nos Estados Unidos os pais à martelada parece um “amador”, diabólico claro.
A criatura Anders Breivik, convém dizê-lo, é um monstro – acabou de o reivindicar - que emerge da normalidade, de uma sociedade que é permissiva a este tipo de práticas extremistas e em que a ideologia extremista cristã, fundamentalista, é tolerada ao ponto da brutalidade – aconteceu violência, mesmo um assassinato, em concertos de Heavy Metal na Noruega e a capa do CD editado pelo grupo em causa tem a imagem do assassinado.
O último resultado eleitoral mostrou um Partido do Progresso forte, anti-islâmico e a favor do envio dos emigrantes africanos para campos em África. Há portanto terreno para estas coisas singrarem. Elas quando surgem não surgem sob a sua forma violenta, surgem como boas medidas económicas e mesmo nacionais, de regresso a tradições culturais próprias, como a utopia de um mundo de estados nação. Este Breivik apresenta-se como um cruzado e afirma, disse agora, querer despertar as massas para o perigo do tal multiculturalismo que, na realidade, pouco tem a ver com tradições culturais próprias, tendo obviamente uma relação estreita com os mecanismos do mercado, o que é outra coisa. O tal multiculturalismo é capa sofisticada de um processo de homogeneização cultural que vem de há muito e que tornou o mundo um único mundo, a aldeia global. O que para aí vem com o domínio chinês tem tudo também a ver com um verdadeiro capitalismo de estado, o capitalismo de partido comunista.
Preferir Churchill não será assim tão estranho, era a favor da selecção racial, da “qualificação” genética. Quanto à música clássica é conhecido o seu esplendor aberto, a sua aura sem antídoto para uso indevido. Sabemos como, entre as artes, é de facto sempre mais exposta a manipulações de sinal oposto – como se posicionará a música? A música transporta-nos para paisagens de exaltação emotiva de alguma cegueira, que pressupõem um apagamento das capacidades críticas – em Apocalipse Now os helicópteros atacam ao som da Cavalgada das Valquírias de Wagner. Há canções nazis de uma “pureza” absoluta, como sabemos que havia orquestras de câmara em campos de concentração constituídas por músicos judeus que eram obrigados a tocar enquanto os seus irmãos eram mortos em câmaras de gás. A Nona Sinfonia foi escolhida como Hino da Rodésia a seu tempo e em 37 foi tocada no aniversário de Hitler.
Já seria mais complicado afirmar-se, esta criatura Breivik, profundo conhecedor de Ésquilo ou de Shakespeare, há neles uma visão e uma gramática do mundo que não é de citações para uso culinário, são obras que só se lêem de modo incorporado. Não se entende nem um nem outro, a fundo, sem os fazer, sem dar o corpo aos textos. É uma outra dimensão das práticas reais da ficção - de que a música é uma enquanto criação e outra enquanto fruição - e não são, nem um nem outro, utilizáveis sem se aprofundarem, por assim dizer.
A sociedade do espectáculo abriu de facto para uma nova modernidade. A visão que cada um tem de si mesmo no fluxo do espectáculo remete sempre para o desejo que cada um tem não de ser cidadão, mas de ser estrela, de sair do estatuto de mero consumidor, quanto mais não seja para ser um consumidor de topo de gama. Este cada um de nós é fundamentalmente o Zé Ninguém, o anónimo – ele há estatutos diversos de anonimato também - o desejoso de celebridade, a criatura massa que quer sair do anonimato ao preço que for. Este é o estatuto mais almejado pela massa jovem que hoje aprende com um ensino de pacote, descartável, disponível para o televisivo referência máxima do êxito, e é um estatuto que tem as suas vias. A via legal, por assim dizer, que se multiplica em concursos televisivos e jogos de azar e sorte e a via do terror. Há certamente violência na via legal, a capacidade de odiar o parceiro, de competir ao ponto do desprezo e da rejeição. Na bola não deixa de ser assim. E Ronaldo é um paradigma do jogo da celebridade, vindo de onde vem. E são jogos de guerra, a sociedade vive uma guerra civil de baixa intensidade com estes pontos de ruptura. Como uma barragem que rompe. A densidade dos conflitos e as válvulas de escape e compressão são articulações. O carácter explosivo – à letra – destas manifestações está aí. Para nós, aqui no Sul, parece estranho. Somos mais de deixar cair uma ponte. Mas os incidentes com a extrema-direita no Bairro Alto há uns anos continuam aí.
O tipo queria uma Noruega só para noruegueses como ele, mas queria no fundo atingir o estado de celebridade. Este horror que materializou prosseguirá agora como ficção. E isso é da ordem do desejo. Rapidamente se sucederão as teorias sobre a psicopatia. A sociedade necessita disso para não aprofundar mais por outro lado, pelo lado da normalidade, da vulgaridade, do reality show, esses territórios do horror potencial. Dizer-se não nazi faz parte do politicamente correcto como pensou o seu perfil, pois pensou-o, a besta.

fernando mora ramos

2 comentários:

  1. Ele só é maluco por achar algum valor assassinável a Durão Barroso, o resto choca apenas pela louridão do cabelo, o azulado dos olhos e o possível metro e oitenta, se ele matasse tipos de pele trigueira, cabelo preto e barba, estaríamos perante um encolher de ombros civilizacional.

    Que grupo foi esse? Só conheço os Mayhem e foi uma foto de um suicídio.
    táxi pluvioso

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  2. Chapeau "táxi pluvioso"!!!



    Apraz-me também remeter para o Blitz: "Autores de discos como De Mysteriis Dom Sathanas ou Grand Declaration of War , os Mayhem foram uns dos protagonistas dos sanguinolentos episódios que afetaram o black metal norueguês, com o suicídio do vocalista Dead, em 1991, e o assassinato do guitarrista Euronymous, pelo também músico Varg Vikernes (Burzum), em 1993.

    Ler mais: http://blitz.aeiou.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=bz.stories/70163#ixzz1TjFDFXr1

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