quinta-feira, 7 de julho de 2011

Javali sentado a espremer laranjas

O javali fuça. Fuça e tem umas fuças que charruam a terra por dentro, até aos dez ou vinte centímetros de fundura, umas fuças de pequeno rinoceronte bicórneo a que uma máquina dentária de alto índice triturador torna um leva tudo adiante, raízes e bolbos, tubérculos, quando acima do chão não há coisa confirmadamente, de modo nasal e táctil, mais suculenta ou substancial, vitamina pura, energia próxima, maçãs caídas, muitas, marmelos, peras e em hortas bem regadas verdura, alfaces, tomatitos, pimentos, pepinos, não é esquisito, marcha tudo – é um bicho que faz tanta falta como o Jagudi em Bissau ao serviço dos municipalizados serviços de higiene pública que não funcionam: o tal do Jagudi come tudo, até lata, plástico, lambe ferro e ferrugem, que mastiga, tritura pedra se preciso, come o mau cheiro com o sol a pino nos olhos.
O Javali é um pequeno tractor, um quatro por quatro animal de alta cilindrada muscular, nada o trava, nem o medo, que não pratica e faz verdadeiras maratonas alimentares noite fora. Não desiste, procura sempre comida, e bebida, e quase ninguém dá por ele. E não é nem toupeira, nem calça luvas no casco, tem um casco que ecoa surdamente, na mesma medida em que fala um tipo de grunhido nasalado de baixo profundo sempre a espirrar – quem sabe se ainda o veremos no São Carlos na conhecida ópera O suíno selvagem amoroso e as valquírias.
Com esse casco que Deus lhe deu, ainda assim é silencioso. Uma besta silenciosa, sempre oculta, clandestina, é da maçonaria dos dentes mais radical, a que anda nas sombras e não é corrupta, não se vende por um qualquer ketchup, nem por cargo parlamentar, é da carbonária que resfolga, detesta realezas, alces e coutados de caça à antiga medieval, pois odeia montarias, essa tropa montada de caça ao bicho, e só mesmo em montarias, nessa variante em seco da malha apertada na pesca assassina, é apanhado. Atrás dele cães, cavalos, caçadores, cornetas, ingleses, mais cães, mais pessoal de correr armado de varapaus, mais cavalos, mais ingleses, todos vestidos de caçadores para depois figurarem em quadros de restaurantes requintados ou pouco requintados em versões descoloridas (incluindo cavalos aperaltados), num género que faz lembrar a infantaria dos tempos do corpo a corpo, baionetas em riste e trincheiras logo valas comuns, como na primeira guerra, quando as coisas se mediam em valentias.
É bicho que investe contra o outro intruso e que anda em família, mais ou menos fila, e tem resistido pois não está à beira da extinção, é rijo e tem aguentado a perseguição milenar de que é alvo. Ninguém se lembraria de fazer uma Associação de Defesa do Javali, nem o javali consentia essa paneleirice. Seria de um ridículo inaudito e o Javali seria o primeiro a gargalhar grunhindo. E é bicho tão desejado que até a porca preta, ou cinzenta, domesticada, o espera nas noites tranquilas do chaparral numas ânsias de fúrias eróticas incontidas tão alçadas que quase dança chaparro acima bolota no chão – imagino, não sei ao certo, mas pelo aspecto do bicho deve ser coisa séria, muito para lá dos modos do touro preto, aquele ali de Benavente e esse não é nada meigo, ainda o outro dia levou cinco de mão beijada ou de cornada rompante para o Centro de Saúde – fechado em dias de festa brava, como se verificou segundo a imprensa local e europeia.
Ora, portanto, como se depreende, o bicho é teso. Mas o que espreme laranjas nem queiram saber. Porque esse já passou a fase selvagem, mas do selvagem tem lá tudo, o essencial, o código genético. E a coisa pode dar-se pior que na Grécia que é onde a coisa se está a dar com resultados mais interessantes e pirotécnicos – a melhor esquerda é aliás a esquerda pirotécnica, porque a outra está em casa a vê-la na TV e aspira depois ao debate argumentado e contra argumentado suficientemente regado (tudo isto em gado como rimou).
O Javali é grego. E as laranjas são andaluzas e algarvias. As baianas têm aquele umbigo do calor baiano, têm um feitio mais vitaminado, mas não são de lá, foram para lá, emigraram e depois lá, na Baía, deu-lhes para aquele umbigo, umbiguaram, o que dá umas sestas infinitas. Ora neste contexto tudo é passível de se desenvolver como solidariedades do Sul. O Javali sentado a espremer laranjas só gosta do Sul da crise. É nessa que ele treina a sua envergadura todo-o-terreno. Nada lhe escapa, nada lhe escapa à fome crítica. É bicho insaciável. É mesmo um blogue. Que se acautelem os do Norte para lá de todo o sul, nada de regionalismos. O Javali Sentado é selvagem, cosmopolita, e filho do império da metáfora que dobrou o cabo da esperança relativa. Cuidado com o Javali que ele levanta-se.

fernando mora ramos

2 comentários:

  1. Nas noites de verão, no barrocal algarvio que, também, é terra de laranjas, é vulgar atravessarem-se à frente, nas estradas e caminhos, ouriços, cobras, coelhos e as tais famílias de javalis em bicha (à frente irá o pai javali, qual chefe de família?), que silenciosa e rapidamente desaparecem entre os arbustos ou arvoredo. Não chegava lá, mas gente que vive no campo, ensinou-me a ver as marcas feitas na terra por esses "pequenos tractores de alta cilindrada muscular".
    Ora, com as minhas fortes raízes familiares algarvias, com estas experiências de encontro com os ditos, com laranjas à sua descrição e com a informação de que "os que espremem laranjas" são mesmo muito, muito "tesos", não seria de esperar senão a minha simpatia e adesão a este universo do "Javali sentado a espremer laranjas".

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  2. rectificação - "discrição"

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