terça-feira, 5 de julho de 2011

Heteromanias e metamorfose

Num mundo que canta a diversidade e pratica a homogeneidade o paradoxo salta à vista: o mesmo caminha pelas veredas do que exibe o diferente e mais se afirma quanto mais o diferente se torna espectáculo normalizando-se, visível até à sua própria saturação e esgotando a diferença nessa exibição da diferença que a destitui de especificidade substantiva vital, genes matricial – a estratégia do senhor Onde, personagem de Vinaver, era a da toupeira, que, invisível, cavando galerias tornava o chão das nossas certezas e mitos mais instável, único caminho actual da verdadeira transformação. Mesmo a descoberta da última tribo índia na Amazónia brasileira, via satélite, não nos faz sonhar com o desconhecido, nem com nenhum Outro. São duzentos índios e habitam três malocas, nada mais interessa que candidatá-los a integrar a reserva prevista, o mundo em que serão folclore para os olhos turísticos dos consumidores de imagens, pessoas de zoo, sem vida futura, apenas o presente e a renda da imagem. O planeta não encerra desconhecidos e até a recente descoberta de novas espécies, lá nas Indonésias, só desperta curiosidade de espírito de palavras cruzadas. Mas será assim? Não existem outras selvas em outras tantas periferias inacessíveis? Mesmo em Nova Iorque não será que para lá da Avenida Cento e Vinte Seis a maior parte da menor parte não se atreve a ir? E não serão as favelas brasileiras selvas urbanas e lugares de perigo e desconhecido? Ou a periferia de Maputo e as ruas de Bombaim mundos com regras imprevisíveis de sobrevivência em que a política, as leis e os parlamentos não entram. Que democracia será a pobreza, a fome, a ausência de lei, a sociedade violenta da selva urbana, a escola que não ensina nem existe, a doença extinta nuns pontos da humanidade confortável e em outros não? Pelos vistos, desde que sejam controláveis os lados de lá dos muros e os lados de cá miseráveis e expostos, cercados de polícias e exércitos, mais as democracias se reduzem às geografias dos incluídos nos mercados e mais a sua forma se converte num condomínio, uma área libertada dos interesses do mercado, um território em que as leis servem os interesses lucrativos de poucos e o acesso aos consumos de alguns – a política democrática neste contexto é residual e cada vez mais uma perícia do simulacro. [O que se passa agora é que mesmo isso está em causa e os tais condomínios democráticos tendem a cingir-se a geografias e demografias mais restritas ainda, há que dizê-lo aos quatro ventos, pois é o caminho que agora fazem os mandantes construtores deste desMundo, especuladores mais poderes estatais servis. O que isso significa é que o poder especulativo globalizado lucra com menos democracia e prefere a selva, vendendo os serviços públicos, destruindo-os, transformando em lucro privado pela via do crédito aquilo que são os custos da qualificação da democracia e a sua substância no limite. A democracia tem um preço, tem custos e nunca esta frase foi tão verdadeira, abaixo desse preço será democracia? Ou será demagogia? O negócio montado com a democracia, com o Estado de direito e com os serviços públicos é a especialidade da política neo-liberal e caminha vertiginosamente para lógica de saldos, saldos para os novos donos e taxas altas para o Estado pagar].
O Outro só pode mesmo ser o nosso outro, que definimos outro por traço de singularidade psicológica, de perfil, de espírito de ficção enovelado, não o Outro de outra cultura, agora também definitivamente marcada pelo contágio com a cultura dominante da globalização, a cultura dos mercados, do capitalismo financeiro, do crédito, das taxas de lucro, das lixeiras e das bolsas, dos caixotes urbanos e das palhotas, da fome e do luxo – nada mais claro que esta relação entre o lixo e o luxo, indissociável, casamento absolutamente perfeito de estratégias religiosas, capitalistas e político espectaculares. O nosso outro, domesticado, é um outro de trazer por casa e na realidade é um mesmo, é mesmo o mesmo com quem vivemos e que nada tem de heterónimo sequer (essa é outra realidade, subjectiva sim, singular, raridade) para além da graça que lhe acharmos – há complementaridades que se fazem por soma, o kitch tomou conta de tudo e passa por ser coisa jurídica, direito, o politicamente correcto é a face visível da estética massiva e exibe-se pela vertigem narcisista que o espectaculariza como montra constante, o outro do paleio sobre a diferença que faz o fluxo do homogéneo que o engole.
Não há nada mais eficaz do que a estratégia da recuperação, manipula a diferença e dela colhe lucro tornando-a inofensiva e normalizando-a, retirando-lhe veneno de irredutibilidade, veneno positivo de transformação igualitária, radicalidade libertadora, expondo-a como signo de novidade pela novidade enquanto outra novidade não ocupa o mesmo espaço e tempo virtuais que a média fabrica de modo sistémico. Aconteceu aos índios, que com o contágio não só amoleceram de uísque como faleceram como tordos com as gripes da Europa e são de há muito um cenário, mesmo que activo, aos operários de Marx enfiados em reuniões de base e de topo, rendidos às benesses pequeno burguesas, operários que só o são de memória e burocratas de realidade, pequenos chefes de reuniões sem fim de costas para a realidade, aos nostálgicos que se fartam de falar da Rosa Luxemburgo atirando-a à cara de terceiros como um ícone sagrado, aos de Maio de sessenta e oito que elegeram a criação ao poder como divisa e que estão todos na terceira casa de campo a criar preguiça e nabos ecológicos, aos maoístas que deram uma volta maior que a perna ao radicalismo estreito da perigosa revolução cultural e que chegaram ao topo da União sobre o cadáver do soldado Alexandrino, pobre coitado e por aí adiante.
Estamos mesmo à espera de qualquer coisa de facto Outra, não para nos redimir do pecado, papel do Messias, mas para nos abrir o caminho de Outra ordem planetária, justa e equilibrada – para quê mais conversa? E esse Outro é de facto esse mesmo que somos e certamente os outros que são excluídos, a maior maioria de sempre e que na realidade não passa do muro para cá, da rede para cá – muros, desde que o muro caiu, quantos cresceram? Na fronteira Mexicano/Americana, na Palestina, e quantos mais, certamente esse também muro que é o Mediterrâneo e dá para Lampedusa?. E o Outro de que falamos habita aldeias improvisadas e deslocalizadas, campos de refúgio, sopas dos pobres, caminhos de fuga constante, não pratica a Net como os incluídos, mesmo indignados, nem entra nos shopping’s de Domingo, mas está aí, um Outro faminto e bandido se necessário.

fernando mora ramos


1 comentário:

  1. Teresa Palma Fernandes6 de julho de 2011 às 01:38

    Se sonho imagino a construção de uma sociedade planetária de inclusão, se penso desanimo, mas ainda não desacreditei.

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