terça-feira, 18 de outubro de 2011

O orçamento e a democracia

É extraordinário como se possam fazer afirmações como esta. O orçamento é meu é como dizer: eu ponho as contas do país em dia, eu sei, eu posso porque quero e mando, como se a economia fosse uma aritmética de crianças, coisa de somar e diminuir, de resolver com soluções caseiras – como a mãe fazia, ou o pai, lá em casa, o amado pilim debaixo da almofada no tempo de Salazar, esse génio das finanças, ou de Caetano, esse autor de primaveras - numa operação que encontraria no deve e haver o seu território. Se não fosse de espantar pela ingenuidade e basismo voluntarista seria certamente de remeter para a bruxaria ou outra ordem de resposta do domínio surreal, oculto ou mesmo extraterrestre, na suposição de que o “é meu” teria dentro magicamente um segredo íntimo, a fórmula única, tal como a receita dos célebres pastéis de nata, ainda hoje no segredo não dos deuses mas do doceiro de Belém. O Primeiro-ministro, no caso, terá certamente uma fórmula incógnita, uma macumba específica, mais ou menos transe e suor empenhados na dança orçamental.
A propriedade do orçamento que o gesto indica, o “é meu”, finta ou tenta fintar uma realidade bem mais complexa do que a afirmação inclui. Não, o orçamento não só não é dele, Primeiro-ministro, mas nem sequer é de todos nós, o país. O orçamente é mesmo deles, dos que credores de voracidade lucrativa ilimitada, exigem que se lhes pague – as agências que para eles trabalham têm a claríssima missão da chantagem e da desestruturação da componente pública das economias – no tempo e nos prazos que a tal troika também sua representante exige e que o governo, mais que a troika, agrava do ponto de vista do que é, a cair na conta dos especuladores “amigos”, o resultado do aperto austero sobre o sector público e a população em geral através dos impostos extraordinários, directos e indirectos, para que estes capitalizem de novo o que “emprestaram” com juros assassinos e de novo “emprestem” a novos juros galopantes e condições ainda mais especulativos e que são, sem margem para dúvidas, de um ponto de vista ético – humano – usura mesmo criminosa, dados os efeitos destruidores à vista de todos, da democracia e das instituições. A metáfora do bebé que vai na água do banho não é demais e poderíamos juntar ao bebe a mãe e o pai, família jovem inteirinha.
Se esta golpada orçamental não é típica de uma espécie de jogada de poker em que o jogador governo aproveita o facto de o adversário, a população portuguesa, não ter trunfos, nem sequer as mesmas cartas para jogar o mesmo jogo, para lhe impor através da austeridade salvífica como se os portugueses fossem apenas uma variável orçamental, uma derrota em todo o terreno, não se percebe de facto o que é, tal é o afã destruidor que as medidas comportam – se é esta a forma de relançar a economia então é preferível decretar já a conversão do país a uma única e generalizada sopa dos pobres, assumindo-se também um novo hino nacional, qualquer coisa sobre a heroicidade das propriedades vitamínicas e proteicas do rabanete que nos alimentará a todos mais loas entoadas aos credores em refrãos de cumprimento da dívida ao preço da própria morte, com o Egas Moniz em fundo de corda no pescoço mas agora além da corda com o cinto tão apertado que a cintura se fosse.
É a economia de casino, é um ataque deliberado ao sector público e ao bem público, é um comportamento de governo testa de ferro desses sectores financeiros especulativos que vêm destruindo as democracias e as conquistas civilizacionais que a Revolução Francesa inaugurou e o mais recente pós guerra relançou. O governo é uma empresa de destruição da democracia, mais até do que uma empresa de cobrança de dívidas, pois cobra a quem não deve. Essa história de que teremos vivido todos, uma espécie de pecado comum português, acima das posses, é injusta e ignóbil, não é verdadeira e que todos paguem por alguns é roubar quem não pecou. Necessitamos de partidos Robin Hood, essa é que é a verdade, que construam mais nova vida real que oposição parlamentar e acções de rua previsíveis.
Não é esta a via porque esta não trará nenhum tipo de crescimento económico, nem nenhuma nova vida possível e pelo contrário trará uma nova e vergonhosa pobreza salazarenta, num tipo de evolução destrutiva da democracia, das liberdades e das condições mínimas de vida digna das populações. Cortar os salários dos funcionários com mais de mil euros mês – e mil euros é várias vezes menos que as mesmas profissões por essa Europa – é um roubo. Estes senhores não têm o direito de entrar assim na casa dos outros. Entrem na própria e naquela daqueles que representam e encontrarão soluções. O dinheiro existe e está aí, é uma questão de o ir buscar justamente ao que foi especulado, à riqueza privada que se encheu de dinheiros públicos, aos offshores e a toda essa economia corrupta e criminosa, ilegal. Não é por acaso que aqueles que investem nesses tais paraísos fiscais têm o nome resguardado pelo segredo conivente de uma legalidade lacaia que os protege. A democracia não pode conviver com aqueles que a destroem e isso não é apenas um problema de crime político, é também um problema de crime económico. Quando a legislação protege os bandidos desta forma isso significa que o legislador também é suspeito. É necessária urgentemente uma nova ordem mundial. Aqueles que supostamente estão legitimados pelo voto estão exactamente como outros a destruir aquilo que foi conquistado com essa legitimidade nascida em ABRIL, a democracia, agora realmente ameaçada de morte pelo capitalismo da especulação financeira.

fernando mora ramos

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