sábado, 20 de agosto de 2011

Papa e indignados

No princípio era o verbo. Era o verbo no meio e no fim será o verbo. O sopro divino era o verbo a corporizar-se criação, objecto, natureza, humanidade, feito como os operários vidreiros fazem, mas sem divinização alguma, quando inventam com o vidro formas de uma transparência divina.
Entretanto o corpo é que paga, como diz a canção coxa numa verdade insofismável. Paga sempre e paga de muitas maneiras, paga levando com o bastão da polícia e paga até impedindo que as palavras se formem inteligência nessa parte do corpo que se chama cérebro, centro nervoso, comando, motor, o nosso Cockpit, como diria um tecnocrata imaginativo assessor de um Passos.
O Papa tem o corpo resguardado e à prova de qualquer pecado, menos do luxo: o luxo dos sapatos Prada, o luxo dos paramentos, o luxo dos dourados, do arsenal de acessórios de uma visão que sendo medieval joga a fundo no pós moderno, experimentalismo em voga de todas as regressões, ou não será isso a sociedade do espectáculo?
Da missa restrita à missa global há que organizar o espectáculo, o papamóvel, os directos globais, as cantilenas da massa e fundamentalmente essa possibilidade de sem paredes termos por céu o céu real, ritual máximo de uma presentificação sacralizada em que a referência e a coisa referida coincidem - e o Senhor mora naquela sua Casa, ali à vista, ficção como tudo o que é objecto de fé e a teologia historia -, como aliás o Papa coincide também com a função delegada que tem do divino e ali está ele, corpo lento e velho, corpo simbólico tropeçando na idade, gestos pausados, o verbo mais que lento, à beira da imobilidade. Nestas coisas do espectáculo do divino só há tranquilidade, a fé vive-se no exterior do stress, o stress é psicologia barata do quotidiano e a fé inscreve-se na crença da eternidade, essa qualidade que a matéria partilha com o que os crentes interiorizam e que se vê no ritmo do Papa: o Papa fala no ritmo da eternidade e tudo o que urge não apressa ritual algum, os que morrem, mesmo em violências evitáveis, partem por vontade do Senhor. E quem não aprecia a lengalenga lenta dos cumprimentos em todas as línguas, infindável selo de garantia da presença da Igreja numa geografia multi-continental? É um espectáculo tragicómico insubstituível, a não perder, a que só o génio de um Tótó daria sublime e inultrapassável expressão de farsa hiper-realista, filme a imaginar.
E toda esta empresa em Espanha, com os jovens do Papa a cantar que são dele, custa de facto fortunas ao erário público e acrescenta dívida à sua tragédia de misérias diária – a dívida é o corpo do diabo agindo, disso não há dúvida, nem figas a fazer de antídoto protector e no entanto o papa não o desafia abertamente.
Contas há que fazer apenas aos salários, para os cortar, aos direitos adquiridos, para os diminuir, aos custos sociais para os fazer minguar, à saúde para se tornar gratuita para o Estado e despesa para os cidadãos, mesmo para os crentes que apesar dos milagres – e este papa sendo mais teórico é mais pelos milagres, mais amigo das trevas – têm essa contradição de ir aos médicos, aos hospitais e de desprezar o que é parceiro do milagre, a mezinha e a oração corta-febre, corta-doença.
Mas não há por certo contas nenhumas a fazer a uma operação deste tipo pelo lado da despesa do Estado. O Estado laico paga a Igreja dominante e para a Igreja dominante é mais confortável assim, beneficia há muito de direitos adquiridos pactuados, particularmente fiscais, indiscutíveis parece. O Estado laico nunca o levou até ao fim, o projecto laico.
Creio que os indignados se indignam com este estado de coisas, são como Cristo que se rebelava contra as injustiças e pugnava pela igualdade contra os soberbos. Os indignados estão contra este Papa pois sabem que este Papa trabalha para que os ricos entrem no Reino dos Céus, são eles que são os seus sponseurs e lhe pagam os Prada. A história do camelo a passar pelo buraco da agulha é improvável na boca de Ratzinger, apesar da beleza da metáfora - pondo de fora as bossas, claro.
O céu é mesmo o Reino dos que têm e têm muito. Este Papa é muita despesa, tem a vocação do despesismo, ele é pelo luxo cerimonial.
Poderia o Vaticano comprar títulos da dívida, como a China? As suas reservas de ouro são ilimitadas dizem e o património vastíssimo. Agora que os pobres são cada vez mais era altura da Igreja se preocupar com a economia de modo prático e não apenas em palavras?
Mas Sua Eminência falou com Zapatero de questões económicas e os resultados certamente não se farão esperar, mesmo que o domínio do senhor não seja o mundo secular.
Os pobres sofrem Senhor e a Igreja dá-lhes o quê, espectáculo?

fernando mora ramos

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