quinta-feira, 11 de agosto de 2011

D’ hoje e de quinhentos

Não, nada de crise, não pesco. Já tem quinhentos anos, desde que a pedra grande na linha do horizonte nos vê, no cais que não era cais mas mato, o cafre de azagaia, meu primo, no cimo da duna, mais de gala-gala que enraivecido que de gente, nunca foi diferente – linha do horizonte a gente tem no olho e usa quando pode olhar o longe, menos vezes que costuma, pois costuma olhar o perto, dia a dia, o perto, o esperto é quem manda e esse olha longe, mesmo o porta-moedas, o esperto vê-o cheio quando está vazio, a gente não, a gente amocha, a gente tem que não tem, o nada na mão tem. A gente crise sempre, desde os tempos. Quando meteram pé na areia só olharam a vantagem, a mamita, a marmita, o rabito, o entre pernas e outras guloseima, mais a vantagem das tenças, terra por missanga, a vantagem da barriga contente bater palmas com a planta dos pés, a vantagem da bunda prateleira além de rego livre faça favor, a bunda, assim mais mesmo mais virada para a lua, como cão, sem vergonha, só tesão e fenda na perspectiva. Tesão é arte, de artesão e faz com trabalho manual e anal e mesmo pela frente, como for, de alto ao chão dos pés e de cima para baixo e vice-versa.
Contaram assim mesmo: agora é crise, grande. Não que não sei, sei mesmo da mesma. Já o tinha, a crise, sempre foi meu, ela. De manhã crise: a crise do mata-bicho. No meio do dia crise, o almoço fora do prato, nem prato, nem almoço, só talher e aí imaginavas, cheiravas o porvir. Não vale sequer brincar ao jantar. Talher sim, herança colonial. Talher completo: faca, colher de sopa, garfo, colher de sobremesa, garfo minhoca, e prato – nunca cá percebi porque a colher uma era sobremesa e outro era grande, sobremesa era tudo e sob a mesa era perna e pé, sapato ou chinelo.
Prato azul de plástico, prato de plástico dura sempre, é como santo, não parte, santo de S. Já viu santo de S partir, partir assim como loiça? Sem Santo não tem milagre. E milagre é mezinha da crise. Põe milagre na crise e comes. Foi o que fiz. Pus milagre, assim um pouco, para não gastar todo, como gotas, a conta-gotas e a crise emagreceu, emagreceu ao ponto de me engrossar. Pouco, muito pouco, assim como a pele do tambor esticada a aumentar o umbigo, umbigo grande mas sem dentro, umbigo de esticado, não como a pele do tambor lassa, nada disso. Às vezes vai para dentro. Encolhe, mete-se dentro. Já viu barriga encolher? Encolhe, barriga encolhe. Única coisa que não encolhe é fome.
Já viu daqueles famintos a passar o mar e a ficar? Pobre é alimento. Mesmo quando só é osso alimenta, alimenta o mar que nunca pára de fazer cemitério e não pagas, não pagas nada, nem o pedaço de terra. E lá em Lampedusa continua, comes piza e voltas para trás, para o sítio da fome, despejado. Aqui não é assim. Aqui estamos na crise há mais de quinhentos anos e continuamos – quinhentos anos mais trinta e tais. Aqui a crise é como o ar que respiras, respiras crise e é por isso que quando respiras sentes a crise, pois ela entra nas narinas e toca no estômago a música dos ossos erodidos. Os ossos ficam em cornucópia quando a carne é pouca. Os ossos lassos ficam moles, como o que está por fora do pezinho de porco, aquela gelatina, aquela coisa mole que estica e contrai, mas não é a mesma coisa porque quando aperta a crise diminui mesmo a moleza que encobre o tutano até ficar zero. Tutano não conhece, a gente. A gente conhece osso e gelatina quando vai para velha. A crise sempre que esteve connosco. Sempre, sempre, ao lado do povo. Por isso quando fala crise a gente não estranha, a gente conhece. A crise é nossa prima e direita, e endireita sempre a gente.

Xico Nem Saguate

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