terça-feira, 16 de agosto de 2011

A antropofagia que nos une

Janelas em odores calados e estáticos
A amálgama dos dias no fio
Os dedos como menires
E o tempo da erosão anunciando
Novos paradigmas de carne enrugada

Azuis passeiam-se
Lentos nas encostas das dunas e parágrafos
As dunas são lentas
E movem-se ou são rápidas e movem-se
Mais rápidas que o amor
As dunas enraízam-se no léxico

O tempo que isso leva a ver não está já na nossa disponibilidade
E elas trabalham em horário completo
Descem pela noite e de dia queimam
Sobem pelos dias e de noite formam-se novas
Por isso queimamos o tempo em cigarros de dedos

Não temos o dom das dunas
Relógios de instante nervoso
Tempo pequenino psicológico
Os pulmões explodem de cinzento que não preenche
Estamos então na porta da velocidade
A cumprir o programa quotidiano

Passam lentas as catraias na rede embaciada do olhar
Lentas de decifrar e rápidas a sorrir
E as dunas são milenares
Antes o mar depois o fogo
E as palavras são muito depois do magma

O magma e a cinza
São o mesmo corpo
A cinza corpo de dunas
Escreve na sua imensa face antracite
Pela pedra abaixo até à rebentação de espumas incessante

Milenar e extensa encosta como não somos a sua medida
Nem essa coisa da metáfora
Cabe na encosta negra
Foi na leva do fogo escorrendo

O canibalismo de lírico tinha a escuta
A sintaxe elementar era basicamente canina
Apenas o corpo e a sua sageza rafeira
A azagaia mais tarde
Corre o tempo contra o vento ao encontro do corpo

O tempo era o faro antes do tempo
O tempo animal
O silêncio a ameaça
Mais tarde o vocabulário fez da duna metáfora
Muito mais tarde

Os olhos deixaram as unhas e passaram de ver a ser vistos
Os pássaros entraram nas rimas
E muito mais tarde os motores e o carvão a mina
Fogo incandescente a cavar a rocha
A mina e a pedra na pedra

Na pedra as vidas foram a pique
Para o calado negro da noite ardendo
Fogos de fornos crematórios depois
No tempo do canibalismo pior que elementar
Queimadas de corpos ardendo em pira e valas

Tudo isso enquanto a duna se manteve mutante
Depois da carnificina
A carnificina doce
Depois do amor as suas descartáveis formas
Como o voo rápido do pássaro que se sonha

No tempo das fábricas
As palavras em espinhos
No tempo entretido do espectáculo
Morremos soterrados de imagens

Essa coisa de mortos vivos
É extraordinária poesia de Beckett
Imóveis a repetir os gestos
Enquanto as dunas se movem
Longe da vista
Na batida do cosmos

O seu coração
É algures
Entre o princípio e a primeira explosão
No centro do magma
A vida resiste a temperaturas inexcedíveis

Dizem essa coisa extraordinária
Que é vir do nada
A duna desce a duna desce na duna
O tempo do cigarro azula
O silêncio dos dedos prescreve
E as fábricas são novas Cretas de vasos cuneiformes
Nos vasos as ancas pelo silêncio do traço subindo lentas
As miúdas da última psicose do corpo abstraídas da pose

Quando o titânio recente for absolutamente derrotado e
Não pertencer a nenhuma liga
Entramos definitivamente na nova galáxia de medos
E o governo das almas será uma gestão dos medos
Os medos plantados do medo

Entretanto a maçã também azula
É essa coisa da imagem
A devorar-nos como uma maré
Que entra segura pela cabeça dentro

O mar
Esse
Estará de novo
Em formação de novos continentes
O vocabulário será amplamente mutável e inscrever-se-á
Nas cabeças como rubis e pérolas
Essas novas minas humanas
Serão muito procuradas
Pelos caçadores de novas sintaxes

Emílio Navarro Soler

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