sábado, 3 de setembro de 2011

A invisibilidade da dupla transparência

Quando pensamos que a política não tem mais periferia para continuar o seu curso centrífugo eis que a realidade nos comprova o contrário e que podemos ainda assistir ao vivo a um prolongar dessa deriva. Em boa verdade ninguém nos diz para aonde nos deslocamos, que percurso cumprimos, o método governativo por que se optou, o modelo social eleito como meta – sim, que será governar mais do que transformar a organização social para melhorar a vida dos cidadãos numa perspectiva tripla, aprofundando a igualdade, a liberdade e qualificando as condições materiais e culturais de existência? Será que alguém acredita que vem aí o que quer que seja de identificável com essa tripla lógica de aprofundamento da democracia? Alguém abre a boca para falar destas questões? Será que supõem que o processo de regressão em curso, o novo PREC, é um processo neutro, uma técnica com finalidades orçamentais que só provoca uns tantos danos colaterais como diziam os americanos enquanto morriam iraquianos civis em cachos e que apenas há que falar de sacrifícios e de repetidamente se dizer que se diz a verdade. A verdade necessita de ser repetida? O que tem essa repetição de água no bico? Sabemos, pelos menos os que viveram a experiência do salazarismo e do marcelismo que o que aí vem se chama pobreza e que essa pobreza, imposta estranhamente no processo de integração europeia – não será melhor falar de processo de desintegração europeu? – faz lembrar aquele Portugal definido por uns chavões do antigamente que referiam o País e o seu Abril, mais o verão e a sardinha, como a possibilidade de os estrangeiros experimentarem os nossos arcaísmos como qualidades – os portugueses são simpáticos, telúricos e comem peixe dando peixe a comer a preços que na Europa seriam impensáveis, aliás dão a comer o peixe e também as descobertas, Vasco da Gama, o robalo e a pescada de Sesimbra, são parte do mesmo mito, o tal que faz de nós um país de marinheiros - infelizmente em extinção pelo fim da frota pesqueira liquidada pelo Primeiro-Ministro Cavaco Silva e pela falta de perspectiva de diplomacia eficaz, certamente económica também, para o espaço da lusofonia. Será que poderemos aí voltar, a uma gesta oceânica, a economia do mar que propalam e nele, no mar, qual seria a nova Índia? Uma agricultura das águas profundas, as fontes de calor hidrotermal dos Açores, a energia das marés, o turismo das ondas, o petróleo que afinal teremos, que não é o do Beato e que será talvez de entre Peniche e Nazaré, nas tais águas que nos decuplicam de tamanho? Mas será que não percebem que essa visão é a mesma estúpida visão do tal “progresso” imparável que trouxe a crise?
Felizmente esse Abril distante, de paisagens intocadas pelo betão, sem estradas e com burros simpáticos pelos caminhos – oh como era lindo o Algarve, e era de facto e a Sofia de Melo Breyner fala disso de modo sublime, falando também do ditador do modo que se sabe -, país de carreiros ainda e de agricultura de subsistência em muitas paragens e interiores, de analfabetismo como tipicidade vendável, não regressará, nem as amendoeiras em flor, já não há espaço de onde se possam olhar, as carroças não existem e a prostituição encartada e de meio alterne expandiu-se em turismo. A urbanização caótica, o turismo do betão e a integração europeia, o consumo como modelo, transformaram Portugal no que é, uma periferia sem capacidade própria de autosustento, dependente das migalhas e directivas da Europa alemã, o seu centro manobrador imperial. Estamos entalados como nunca e não temos para onde ir que não seja por iniciativa pessoal, de novo emigrando, já que se somos país da dívida não seremos exactamente Europa e a política nada desenhou de dimensionado no espaço lusófono, por exemplo e nunca se concretizou e planificou a sério uma política da língua no quadro de uma transformação cultural profunda. Novas formas de analfabetismo estão aí, tanto pela via da escola do facilitismo, com Bolonha a marcar como objectivo o “desconhecimento” e a ligeireza de saberes, fornecendo licenciaturas como quem tira a carta de automóvel – os miúdos licenciados vão para caixas de supermercados e para os Call Centers – como pela via de uma hipertrofia das práticas e vivências do consumo.
Não será estranho, no meio disto, que Vasco Graça Moura e Marques Mendes, seniores da política e por assim dizer, maratonistas, venham chamar a atenção para as subidas de impostos que aí vêm contra as promessas eleitorais. A classe média não aguenta. Será que essa classe média já os toca e por isso falam? Mesmo Mário Soares, estranhamente cordato a dar lições em Universidades de Verão com grandes horizontes de saber, diz que nunca imaginou que se fosse tão longe no ataque à dita classe média. O que é curioso é que se fala apenas de um erro governativo estranho: não será a palavra falsa que importa, dizer que não se faz em clima eleitoral e fazê-lo governando, o que importa é que há um défice de explicação ao fazer o contrário do que se disse, há necessidade de explicar porque se mentiu e basta. Eis a verdade: é uma questão de enquadramento. Na realidade não sei porque protestam, tudo tem sido muito transparente, duplamente, na Net e em papel, tão transparente que de transparente atingiu a invisibilidade, a forma própria da verdade conveniente. Afinal, no meio disto, as tais nomeações de gente que não são boys nem girls atingiram os setecentos e sessenta nomeados segundo o Diário de Notícias, pois as listagens reveladas afinal não revelam os números totais. Bons tempos para a verdade dançar. E a falta que faz.

fernando mora ramos

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