quinta-feira, 1 de setembro de 2011

E mil violas floresceram

Anda aí um vídeo com crianças coreanas do norte a tocarem viola como adultos. São crianças de 4 e 5 anos. Seis, no máximo 7, a idade em que Mozart dava concertos. A receita é antiga, é a dos meninos-prodígio, agora pela via da Net, com garantia de virtualização globalizada – quantas narrativas não vão florescer?
A Coreia diz-se que é um comunismo dinástico. Até o preparado, combativo e culto como poucos políticos portugueses, o rigoroso Álvaro Cunhal – aqui não vem ao caso observar outros feitos - a criticou, dizendo ser inaceitável que, num supostamente existente comunismo, se herdassem funções de liderança máxima por laços de sangue, ao contrário do que mais tarde fez um pupilo impreparado em líder de bancada. Comunismo, creio, seria a sociedade sem classes e essa não só não veio como não virá. Um mundo sem classes é um mundo sem conflitos, um mundo sem mundo, um não mundo. O fim da história seria o fim dos conflitos, um paraíso de tecnologia e vida sob remoto controle autogerido, tudo a fluir sem esforço, o fim do nervo e do músculo obreiro, um mundo sem arestas nem famílias, sem conflitos maiores que os do ladrar do cão do vizinho na hora da minha sesta, o que só uma visão religiosa pode edificar para conforto de prospectiva e neurose aplacada em saudosa linha do horizonte por vir. As tentativas do perfeito utópico levaram às tragédias conhecidas, pelo que batalhar pelo imperfeito utópico é mais libertador e consentâneo com os devires da história, sem cair nos pragmatismos de trazer por casa dos liberais vendidos às bolsas e à especulação – certamente haverá, numa definição mais precisa de objectivos e de um tempo a construir, uma sociedade mais justa, esta é que não é exemplo de nada, nem a que aí vem e os do presente canhestro dizem que constroem destruindo o que de melhor se tinha atingido.
De facto, a igualdade, a fraternidade, a democracia, a luta pelo direito de aceder às mesmas condições dignas de vida, o emprego, a relação entre a vocação, o desejo de, e a profissão em destino, a preciosa liberdade e a forma como todas essas partes da realidade convergindo ordenam uma sociedade, é uma outra coisa, uma sociedade que não necessita de ser baptizada como um nenhum algures impreciso por vir e que se encontrará certamente na via de um progressivo aperfeiçoamento democrático, ilimitado aliás.
Estas crianças mostram o que aquilo é: uma sociedade militarizada até à unha – certamente cortam-nas todos pelo mesmo tamanho para arranhar em condições o tigre de papel, assim como em parada são um massa prefeita, como as tropas de Hitler.
Quem olhar bem o vídeo, percebe duas coisas: 1) as crianças estão sob uma pressão tal que não estão ali, olham como marionetas. E a música que sai é uma música sob comando, nada flui, tudo marcha naquele concerto, tocam como quem faz continência, como quem apresenta armas, faz um sentido, um passo em frente, uma direita volver. E isso ouve-se no que é tocado, os sons saem com a precisão de um mecanismo de relógio suíço, saem na total ausência de investimento emocional liberto das crianças e com a precisão do medo de falhar, saem como ordem acéfala. 2) No fim, as crianças são tão rápidas a agradecer que agradecem antes das palmas, como um animal de circo a quem não se pode exigir sequer inteligência lógica imediata.
O que será isto? A tentativa de demonstração de que lá por aqueles lados as crianças são génios musicais e que a sociedade é a sociedade que as cria e por isso será tão perfeita quanto o que eles tocam? Só quem for surdo e cego lê isso naquele vídeo, o que não será de espantar nesta sociedade hiper-massiva de controle em que vivemos, e em que os surdos, cegos e mudos abundam sob a figura do consumidor voraz e iletrado.
Mas por cá a diferença não é muita: quando há criancinhas das mesmas idades a cantar fado e a dar chutos na bola com muito jeito do que se trata? Alguns já dão chutos nas barrigas das mães que o pai sonha logo como pontapés afinados na bola e entram para o clube antes da fralda. Em muitos destes casos, os pais, vão as vezes necessárias a Fátima jogar a cartada do milagre e da promessa. A humanidade é amplamente chicoesperta, é um traço globalizado e desde logo globalizado por génese antropológica, essa condição comum fundadora da vida.

fernando mora ramos

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