domingo, 11 de setembro de 2011

Capitais, culturais e europeias (1)

1. O evento: a primeira circunstância será a da pertinência deste nome na análise, evento, grande evento, evento único e o que nos diz da coisa, da localização, do tempo e das amplitudes de sentido que partilhe e dissemine. Evento – palavra que se usa para tudo o que misture acontecimentos, aparentes intensificações de densidade de experiências sensíveis sob a forma de mediatizações e espectáculo, isto é, todas as coisas, tudo o que acontece, o que traduz logo o que na realidade é mais oculto no que transparece e transborda numa Capital Europeia da Cultura: a de que nada acontece de mudança, de transformação de horizontes concretos de vida com a alteração das condições de criação real que activassem o papel das artes e da cultura, a sua inscrição, o enraizamento diríamos melhor, das suas práticas na vida quotidiana da cidade – enraizamento significa o contrário de sobrevoar, de surfar, significa a incorporação de uma nova orgânica vital – é essa mudança que não chega, em que não se aposta, significaria outra forma de viver, outra estruturação da vida na cidade, outros modos de criar e fruir pertencentes ao corpo urbano. A que associamos evento? À rapidez, ao seu desaparecimento e à sua substituição por um novo evento portanto, entretenimento intenso de um ano, feira ou como lhe queiram chamar.

2. É claro que a primeira questão que surge é a da separação que é desde logo feita entre a crise e a curtição, festa seria ainda outra coisa e não artifício e as festas de tão fabricadas como espectáculo – uma forma de poder certamente – são um bem em extinção. As dificuldades da alegria comunitária são contraditadas pela atomização das relações, pelo isolamento, pelo anonimato, pela solidão no meio da massa e a festa massiva vive de muita energia irracional gasta como forma de consumo massivo. Como estamos hoje é como se a meio de uma guerra civil fosse possível sobre os corpos das vítimas transformar os rituais fúnebres e o luto em marcha pela via da crise em celebrações de futuro simulado, realizadas por manobras de marketing associadas às imagens de marca de empresas que as quisessem por assim dizer produzir, como agora sucedeu na estação da Baixa-Chiado a PT Bluestation, certamente ganhando pelo nome um estatuto globalizado e até nova-iorquino – os baptismos não são neutros e vendem imagens e na imagem supostamente habitamos, figurantes de uma realidade sempre virtualizada pela publicidade, consumidores da religião das marcas e da imagem das empresas.

3. Na realidade o que estamos a viver é um descaminho e não um caminho europeu, se com Europeu queremos dizer algo relacionado com as matrizes culturais da Europa, desde logo a cidade grega, o teatro e a política indissoluvelmente associados na mesma praça, as tradições positivas e potência de futuros possíveis da história da Europa, a Revolução Francesa e as tentativas populares de criar outro planeta nos inícios do século XX, a democracia reinventada no pós-guerra, o Estado Social, o melhor das sociais-democracias. Tivemos aliás sempre a capacidade de também sonhar com as experimentações sociais de outras áreas do planeta.

4. Se pensarmos, por outro lado, que Europa quer dizer, muito mais que os actuais epifenómenos de natureza criacionista de tipo para-artístico nos casos da arte e da cultura, desde logo viajamos nas narrativas fundadoras do humano no continente Homero e certamente em Gil Vicente, Shakespeare, Marivaux, Goldoni, Tcheckov, Beckett, Tabori, Pina Baush, e Barker – o grego vivo mais grego de todos nós - e no pós guerra, nas democracias reemergindo como políticas públicas artísticas com expressão orgânica institucional, e nestas os Berlineres e os Piccolos, os museus de todo o tipo, as escolas de artes, a arte no espaço público, a descentralização das estruturas de criação, a regionalização das condições de criação, etc., os novos programas de alfabetização artística e os novos equipamentos, uns e outros a par nesses tempos de projectos pensados em articulação e sinergias, ao contrário dos nossos em que para as arquitecturas novas não há programas culturais prévios, há dinheiro que se esvai nop meio de múltiplos discursos, constantes, sobre a rendibilização da cultura e das artes, veja-se o caso lamentável do CCB. Sempre que ouvirem esta palavra, rentabilização ouçam despesismo, o que eles acusam os outros de fazer.

5. O que poderemos constatar é que as políticas que se sucederam a estas do pós guerra e que dão corpo a este tipo de projectos como as capitais, do tipo festival e mais ou menos longos na sua lógica temporal sempre curta, são a favor do fenómeno, da excepção, da excelência fugaz, mas nada de excelente criam que crie excelência por assim dizer permanente, como um bom solo cria um bom vinho – nada se enraíza num ano e normalmente os programas destas capitais só fingem os antes e os depois como algo estruturante, porque depois já não há dinheiro, apenas houve para a obra, mas não haverá para a vida, para habitar o edifício, o edifício é aliás feito de simulacros.

6. A democracia não se aprofunda, as artes não se inscrevem, as cidades tornam-se montras de consumo para turistas rápidos que as coleccionam em fotografias intermináveis – ele há mesmo vilas que se convertem em cenários, são desabitadas e os poucos habitantes são como animais exóticos, figurantes empregados de um zoo patrimonial a que os outros trazem a moedinha. No zoo de Lisboa, na minha infância, depois da moeda, o elefante tocava o sino e estava sempre de uma pachorrenta tristeza, na realidade sonhava com a savana.

7. Estas capitais são justamente sistemas de ilusão na produção do novo, são formas de o mascarar. São máscaras do novo, dado que o novo pouco tem a ver com a constante inovação dos seus aspectos – o que o design, esse fiel servidor do marketing, cumpre – mas tem a ver justamente com o surgimento do que não está pré-definido como aquilo que é a formação do gosto, ou dos gostos e não a sua formatação. O novo não se anuncia, nem se autopromove em publicidade, muitas vezes leva décadas a ser parido com expressão social, assim aconteceu com livros determinantes ou com as publicações de Pessoa em vida – um novo certamente muito complexo e por muito que o queiram, dificilmente convertível numa qualquer moeda de troca como acontece a muito objecto que se assume artístico, particularmente na ordem do que é hiper-visível e pleno de pirotecnia fugaz: quando se vai por eles já lá não estão, como a maioria dos espectáculos do tipo performativo que justamente radicalizam a sua instantaneidade e a sua inutilidade expressiva, a sua fugacidade.

8. A tal sociedade do hiper-controlo de massas estará aí. Eu não percebo muito disso mas parece-me que esta caracterização tem tudo a ver com a esfera da recepção e com o sistema que a alimenta, com o consumo é claro e com as marcas a assumirem o jogo da diversidade e da pluralidade vestindo com esses fatos o que é negociado e mercadificável, fazendo-o manipulando tudo o que tem a ver com os nossos medos, convicções, fantasmas, diria, com os nossos eus, com os narcisismos e os desesperos. A publicidade não tem fronteiras, ao contrário da arte que persegue objectivos éticos nas práticas estéticas, ou deveria fazê-lo, tentá-lo, por vezes em ambiente de contradições que sangram.

9. Esta história agora recorrente das indústrias criativas, como uns dizem ou das indústrias culturais, como outros dizem, é uma coisa que me parece simples e que se relaciona, como foi sempre aliás, com a incorporação de elementos criativos nos objectos de consumo e digamos nas nossas experiências sensíveis presenciais mais ou menos massivas. A IKEA é uma indústria criativa, como será de uma outra forma a Colecção Berardo: o que significará a utilização de um espaço público sofisticado, único, pela colecção de artes visuais de um especulador privado? Eu não me refiro ao valor artístico das peças consideradas isoladamente e porventura imagináveis noutros contextos de fruição, refiro-me ao facto de a colecção estar exposta numa espécie de cofre visível estatal como um investimento de um banqueiro que dela se apropriou, e o que essa situação significa objectivamente: um aumento do seu próprio valor como valor dinheiro, como negócio futuro, já que a colecção, não está dito que se venha a converter num bem público. O CCB é a montra pública de um investimento privado cuja valorização se acentua por esse facto. É um negócio pois produz lucro a prazo e fá-lo num contexto em que é o Estado a promover e incentivar a prática especulativa. É, sendo uma colecção, uma forma de a fazer render num espaço que é nosso. O CCB será nosso?

(continua)

fernando mora ramos

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