terça-feira, 13 de setembro de 2011

Capitais, culturais e europeias (3)

(continuação)

20. E em muitos casos certamente, a qualidade dos animadores vai fazer milagres, criar mesmo experiências de profundidade humana. Eu não me refiro aqui a muitos projectos que serão certamente bem pensados e com equipas capazes e sérias. Eu refiro o todo da iniciativa, o consórcio dirigente e o fundo negocial deste tipo de coisas e a sua falsa política de rastos úteis em prospectiva. Por detrás estarão muitos interesses empresariais, muita obra, muito mais determinantes do que quaisquer objectivos artísticos e culturais estruturantes, até agora não clarificados.

21. Uma análise profunda e detalhada das aritméticas dos montantes usados e em quê seria aliás de fazer, por razões de diagnóstico e de compreensão dos fenómenos. O que aliás rima agora com a moda única do corte, já que apenas podemos aprender, daqui para a frente, a fazer apenas contas de diminuir e somar é uma operação algo irreal, que não saberemos em breve o que é, em extinção como os pandas.

22. Só pela via de uma planificação integrada, local, nacional e internacionalizada e na perspectiva do enraizamento de uma nova vida cultural – e certamente de aspectos de economia pública e privada que lhe corresponda e não o contrário, se poderia caminhar numa direcção pressentida, absolutamente necessária – estas coisas têm de enunciar desígnios e metas. Assim, como é, à curtição seguir-se-á, como aliás é natural, a ressaca.

23. Para uma verdadeira mudança cultural europeia os prazos de realização de verdadeiros projectos de transformação nada têm a ver com eventos e pirotecnias, com falsas intensidades e fugas para a frente, zapping e fugacidade. Duração é a palavra, média e longa duração, os projectos europeus não podem coincidir com ciclos de poder assentes em dependências de lógicas eleitorais – dois anos para fingir que se faz qualquer coisa e outros dois para desfazer o que se fingiu organizando as baterias e a despesa para novo espectáculo eleitoral. Os ciclos de tempo das iniciativas estão de facto indexados por assim dizer a tempos de gestação sempre abortivos daquilo que se vende como sonho e isso deve-se de facto ao jogo da mobilidade das clientelas de poder nos poderes. Só o aprofundamento da democracia cultural trará lógicas democráticas de mobilidade social e novos poderes, poderes democráticos.

24. A transformação tem de ser inscrita num outro espaço e esse é o da memória, da memória cultural, artística e política, propulsora, futuro em acto. Nada se pode assentar sobre a inovação em abstracto, esse pseudoconceito que nada tem a ver com invenção e tudo com a superficialidade de uma lógica discursiva ecrã/maníaca, dependente do primado dos condicionamentos mediáticos. Com Sócrates inovava-se a torto e a direito, instante a instante, do Magalhães ao simplex e deste directamente para crise, como se vê e sente.

25. A Memória prospectiva, a tradição e a invenção numa dialéctica de contrastes positiva, pode abrir um caminho. Não nos faltam excelentes pensadores nem visionários esclarecidos do futuro, a Europa é rica dessa riqueza desprezada, o nosso problema é que estamos reféns da mediocridade instalada nos poderes, nos sistemas de poder, como mais uma vez agora constatamos, por via dessa classe média disposta a tudo, a todas as ginásticas e a pouca verticalidade. No pouco tempo de exercício do poder destes novos-ricos da política já lá vão quase oitocentos nomeados directos num total de cinco mil contratações. Imagino que sejam muitos e sei que são muitos considerando o afã desestruturador do aparelho de Estado, particularmente nas suas vertentes de assistência social, exactamente no mesmo momento dos contractos para a nova clientela.

26. Enfim, era importante que um projecto de reformulação deste tipo de supostos impulsos organizados, que dirão marcos de desenvolvimento cultural e aprofundamento democrático, considerassem ainda vários elementos decisivos de um qualquer entrosamento projectual com as realidades: a questão das linguagens e a alfabetização dos espectadores e as vias disso é essencial, não como técnicas, mas como formas vitais de compreensão, como capacidade de inventar o que se pensa e de agir com pensamento. Que isso pudesse acontecer não num quadro de nivelamento por baixo ou de generalização de vulgaridades, mas segundo um caminho que fosse elitista para todos, repito, elitista para todos, qualificado para todos, nivelado por cima para todos.

27. E não nos esqueçamos da língua, como húmus de tudo, riqueza feita de todas as diversidades, mas também e para mais com esta história do acordo ortográfico, como objecto de projectos, uns mais técnicos, mas muitos mais certamente de cultivo prático do literário.

28. Se assim fossem as coisas, a prazo longo, do Estado repressivo passaríamos à possibilidade generalizada dos estados estéticos e a GNR, Guarda Nacional Republicana, seria uma escola de artes.

(conclusão)

fernando mora ramos

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