terça-feira, 26 de julho de 2011

A Cultura, o sucesso da dívida e o escritor José Viegas

Não foi boa notícia passar a Secretaria de Estado mesmo que não seja uma tragédia. E até seria relevante que o Primeiro-Ministro fosse o Ministro do Secretário de Estado da Cultura, o que significaria, sendo o Primeiro-Ministro o Primeiro dos Ministros, que a Cultura passaria a uma primeira importância entre as hierarquizações a estabelecer nas opções de governação. Governar é optar. E em Portugal desvalorizar a Cultura será optar pelo mesmo, optar pela valorização do que a exclui. E excluir a Cultura de uma relevância da acção governativa é optar pela desqualificação, pelo retrocesso, pelo incumprimento da meta essencial do crescimento económico como verdadeiro caminho de nos libertarmos das imposições da dívida, um colete-de-forças que gerará, pelo menos nos próximos tempos, não só conflitualidade social com resultados económicos regressivos, mas também bloqueio e retrocesso das práticas e do perfil democráticos da nossa vida comum. A dívida gerará falta de democracia, não nos iludamos.
Optar pela irrelevância cultural significa optar pela incapacidade de estímulo à inovação. A cultura, todas as suas formas, patrimoniais e criativas, tradição e invenção, modernidade e criatividade, identidade plasmada em modos de agir, é essencial a uma visão do país e simultaneamente essencial a formas de substantivação das nossas actividades profissionais, do exercício competente e mentalmente aberto das profissões. O trabalho e a qualificação dos portugueses, a qualificação profissional e produtiva, é uma questão cultural, não é uma questão de violência imposta dos longos horários e da intensificação dos ritmos de trabalho, do estabelecimento de leis mais brutais de despedimento, de formas de organização laboral para as quais os trabalhadores são uma voz que não conta. Pelo contrário, todos sabemos aonde leva a baixa qualificação: não só leva a uma desqualificação das mercadorias em si, como leva a formas unilaterais de desenvolvimento que pedem trabalho menos qualificado, como são obviamente aquelas ligadas à política do betão e auto-estradas – um país não é um projecto de construção civil.
Não se fala de sectores mais avançados, de aplicação da tecnologia qualificada a sistemas de produção, de electrónica aplicada, de sofisticação técnico-profissional, sem falar de cultura. É como falar de desporto ignorando os sistemas de treino e organização da alta competição e da pintura sem conhecer Picasso nomeando a Guernica como uma tourada. Ler e ser capaz de ler não é uma distracção, é mais que isso um treino do mental e traduz-se em formas de desenvolvimento de capacidades de ficção que têm aplicações práticas nas actividades profissionais – imaginar não é inútil e não há inovação sem imaginação e a imaginação é cultural, mesmo que essa cultura não seja necessariamente a erudita, mas também, desde que não falemos apenas do Doutor da Commedia Dell’arte e respectivo latinório. As culturas populares são culturas - vejam-se os magníficos textos dos Bonecos de Santo Aleixo - já o que é massivo depende mais do que na publicidade é absolutamente venal.
Nada será assim tão mecânico mas sem ler, sem saber ler – não se trata de juntar palavras, nem é coisa exclusiva da escola que, neste momento, treslê e muitas vezes amplia tão só o que se poderá chamar de linguagem do mercado – nada se lê do futuro, nem há projectos para o país. A qualidade dos projectos governativos do país depende da qualidade cultural do governo. Um Ministro inculto nunca será um bom Ministro e quem disser o contrário está a disparatar ou a justificar o seu poder por razões de pura força e não por razões de razoabilidade e bom senso.
Mas mais que as funções cognitivas associadas à experiência das artes, como espectadores, cidadãos e criadores, pela via da escola e pela via da qualidade da nossa vida real instituída e a gerada pela sociedade civil, é necessário perceber que esse luxo que é uma vida cultural rica é em si um desígnio de modelo de sociedade: uma sociedade que eleja no lugar do consumo e do coleccionismo, da enumeração como uma tara, a fruição do que é específico do humano, a sua capacidade de inventar, de ser imaginando, que eleja a criação como caminho, caminha para um futuro, o que, o uso também todo do nosso património de clássicos e de clássicos contemporâneos, projectado no presente e nas obras do presente, pode ser justamente como identidade a fruir, vida cultural organicamente plasmada no corpo das nossas vivências diárias e futuro em acto. O clássico abre perspectivas, não fecha o leitor, o autor da leitura, no deslumbramento, nem apenas na interpretação, abre a modos de ler outras coisas, obras e realidades, abre a outros modos de competência e ser e inovar, imaginar, ficcionar só pode resultar da incorporação – in-corporar, interiorizar, o que em matéria de texto será decorar desde que se perceba que tem a ver com saber de coração, meter na respiração - da referência clássica e científica como uma visão prática. Ainda agora, na morte de Lucien Freud, se referem as suas relações com Cézanne, Watteau e Chardin.
Na realidade o que será um país sem bibliotecas, sem cinema, sem teatros, sem arquitectura, sem pintura, sem novas formas artísticas, sem a paisagem do Douro como algo nosso, sem o Tejo de Camões e sem a arquitectura contemporânea, a Malagueira ou o Estádio do Braga? Um arremedo de país, um simulacro, uma não nação. Há que entender que a “inutilidade” das formas culturais e artísticas, a inutilidade de Gil Vicente e Pessoa, de César Monteiro e Paula Rego, da Editora Cotovia e do Pedro Carneiro, da Maria João Pires e do Herberto Hélder, da criação teatral e do património museológico, é afinal o nosso tudo, não só o que somos mas o que viremos a ser. Tornar a cultura, como fez o governo do Engenheiro Sócrates – um Primeiro-Ministro que agora vai estudar Sócrates para Paris – uma irrelevância e um assunto táctico a espaços reactivos, é lançar o País na continuidade do mesmo impasse.
E nada disto tem a ver com a cereja no topo do bolo, vaidades cíclicas de megalomanias ligadas à bola ou a outras teorias de auto-estima, coisa um pouco burra, nem com destinos decorativos, performativos e plenos de ideologia creacionista ou a modos de fingir que se é muito up to dat, mais nova-iorquino que os nova-iorquinos. Isso é o que foi acontecendo do 25 de Abril para cá com o sucesso que a dívida acumulou.

fernando mora ramos

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